A DOR QUE LEMBRA, O AMOR QUE PERMANECE

“Somos o esquecimento que seremos,

o pó elemental que nos ignora…”

Jorge Luis Borges

É a partir deste verso de Borges que Héctor Abad Faciolince dá nome à sua obra-prima. Mas se o poeta argentino nos recorda da fatalidade do esquecimento, o autor colombiano escreve contra ela. Somos o Esquecimento que Seremos é o esforço comovente de um filho que, ao narrar a vida e morte do pai, o resgata da sombra da ausência e o inscreve na permanência da memória.

Somos o Esquecimento que Seremos é um dos romances mais aclamados da literatura latino-americana do século XXI. A história é real e reconstrói, com beleza e brutalidade, a figura de Héctor Abad Gómez, médico, professor e ativista dos direitos humanos, assassinado em Medellín em 1987 pela violência política que varria a Colômbia. A narrativa é, ao mesmo tempo, um testamento de amor filial e um grito contra o esquecimento institucionalizado, um livro que honra a memória como forma de resistência.

“Escrevi este livro para não perder o meu pai duas vezes: a primeira, quando o mataram; a segunda, quando o esquecermos.” A frase é uma chave e revela a essência da obra: lembrar como forma de sobrevivência — não apenas dele, o pai, mas de nós mesmos. Porque lembrar é manter vivo, “é passar outra vez pelo coração” (…). Não escrevi durante tantos anos por um motivo muito simples: a sua recordação comovia-me demasiado para poder escrever. (…) Agora, já passaram duas vezes dez anos, e sou capaz de conservar a serenidade ao redigir esta espécie de memorial de agravos.” Para Héctor Abad Faciolince, escrever este livro é um seu manifesto de amor e rebeldia, pois durante estes vinte anos, todos os meses e todas as semanas sentiu “que tinha o dever ineludível, não de vingar a sua morte, mas, pelo menos, de a contar”.

A narrativa deste derradeiro abraço entre pai e filho alterna entre o tom íntimo com o político, costurando episódios da infância com os horrores da guerra civil não declarada na Colômbia. Mais do que um relato cruel de violência, o livro é um mapa emocional de um sistema familiar muito consciente das suas diferenças, do tempo em que vivia e do lugar que cada um ocupava. A contradição era o elemento essencial nesta família que acreditava na ética humana como princípio e fim da união de todas as polaridades.

Este livro é um percurso interior de um filho em busca de entendimento, de reconciliação com o próprio luto, com a violência, a injustiça e, acima de tudo, com a grandeza do pai. “Eu era um filho que admirava tanto o seu pai, que me sentia diminuído diante dele. Custava-me ser seu filho e, ao mesmo tempo, ser eu próprio.” Bert Hellinger diria que é mesmo assim, porque o pai é sempre o grande, e o filho o pequeno.

Foram precisos vinte anos para Faciolince chegar a este lugar. Tomar o pai. Assumir a herança emocional, com tudo o que ela implica: amor, admiração, sombra, espelho, fardo e asas. O seu pai não é apenas um mártir, é um homem cheio de ternura, teimosias, ideais inabaláveis, de uma humanidade extraordinária. Um pai que lia poesia à filha adoentada, que lutava pela saúde pública, que vivia com uma ética quase impraticável. Tomar um pai tão grande obriga a desbravar muito caminho internamente. Pode ser difícil e demorado, mas é necessário para poder seguir inteiro.

“O meu pai era o homem mais bom que conheci. E mataram-no como a um cão.” A brutalidade do fim contrasta com a delicadeza da lembrança. E esse contraste é o que sustenta a beleza trágica do livro. Porque o afeto que atravessa as suas páginas não é apenas saudade, é transformação. A dor torna-se palavra, a perda torna-se gesto, o amor torna-se memória partilhada.

Somos o Esquecimento que Seremos é uma carta de amor, um ritual de passagem: o momento em que deixamos de ser apenas filhos e nos tornamos inteiros, aceitando a vida como ela é, tomando o pai dentro de nós, não para repeti-lo, mas para o levar connosco vida fora. Porque tomar o pai é também assumir a sua história, os seus valores, as suas falhas e grandezas, como parte viva de nós mesmos. Ao escrever sobre o pai, o autor não apenas o honra, como faz com que permaneça um pouco mais, adiando o esquecimento. Uma vida pública interrompida, mas uma presença privada que insiste em ficar, “em adiar-se por mais um instante (…) graças aos olhos, poucos ou muitos, que alguma vez se detiverem nestas letras”.