Um caminho de volta a casa



A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.


Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou

A vinda tem a regressão errada.

Já não sei de onde vim nem onde estou.

De o não saber, minha alma está parada.


Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar,


Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.

Fernando Pessoa

Durante muito tempo, pensámos que crescer significava esquecer. Esquecer os medos, as feridas, os sonhos. Esquecer quem fomos para caber no que o mundo espera de nós. Mas a verdade é que dentro de cada adulto vive uma criança. E essa criança não desaparece com os anos. Ela cala-se. Espera. Mas continua ali, à espera de ser escutada.

No Affectum, acreditamos que reencontrar essa criança é um dos passos mais profundos no caminho terapêutico. E não por nostalgia, mas por integridade, por plenitude do ser.

A “criança interior” é um conceito que se tornou familiar no campo da psicoterapia a partir da década de 1980, mas encontra as suas raízes muito antes.

Para Carl Gustav Jung, essa parte do indivíduo representa um arquétipo fundamental, o da criança divina, símbolo da renovação, do potencial criativo e do verdadeiro self (Jung, 1959). Ela carrega a essência daquilo que somos para além dos condicionamentos sociais.

John Bradshaw, um dos principais nomes a popularizar o tema, descreve a criança interior como “o centro da nossa vitalidade, sensibilidade e espontaneidade” (Homecoming, 1990). No entanto, quando a infância é marcada por dor, rejeição, negligência emocional ou exigências desmedidas, essa criança recua. Aprende a esconder-se. A adaptar-se. A sobreviver. Mas nunca deixa de sentir.

Alice Miller (1981) demonstrou como os adultos aparentemente funcionais muitas vezes carregam profundas feridas emocionais que têm origem na infância, criando o que ela chamou de drama da criança dotada, e que é aquela que aprendeu cedo a reprimir o que sentia para manter o amor dos adultos à sua volta.

Porque é importante voltar a ela? Porque sem esse reencontro, vivemos em fragmentação. Porque partes de nós, emocionais, criativas, afetivas, ficam presas num tempo interno não resolvido.

A neurociência afetiva corrobora essa visão: experiências emocionais precoces, sobretudo aquelas que envolvem dor, medo ou abandono, moldam profundamente o cérebro em desenvolvimento, particularmente o sistema límbico, responsável pela memória emocional (Siegel, 2012). Mesmo quando não nos lembramos com clareza do que aconteceu, o corpo lembra, através de sintomas, padrões relacionais disfuncionais, ansiedades ou bloqueios.

Gabor Maté (2021) vai ainda mais longe ao afirmar que muitas doenças crónicas, vícios e estados de burnout estão enraizados em traumas não integrados da infância. Não se trata apenas de ir ao passado, mas de curar as marcas que o passado deixou no presente.

A escuta da criança interior não acontece com pressa. Acontece na presença, na relação terapêutica, no acolhimento sem julgamento. Na terapia, criamos um espaço seguro para que a criança que fomos possa ser reconhecida, escutada e cuidada.

É através dessa escuta compassiva que o adulto que hoje somos pode aprender a dar à criança o que ela não teve: segurança, afeto incondicional, liberdade para sentir. Ao fazê-lo, integramos as partes de nós que estavam excluídas. Damos novos significados às experiências antigas. Reescrevemos a narrativa interna a partir de um lugar de consciência.

Curar a criança interior é, no fundo, voltar a casa. É parar de lutar contra o que sentimos e aprender a abraçar as nossas vulnerabilidades com respeito.

É perceber que não somos fracos por precisarmos de colo. Somos humanos.

No Affectum, honramos esse reencontro como um momento sagrado do processo terapêutico. Porque acreditamos que só quando escutamos a criança interior é que nos tornamos, verdadeiramente, adultos inteiros.

Se sentes que há dentro de ti uma parte à espera de escuta, talvez este seja o momento de a acolher.

 Referências:

  • Bradshaw, J. (1990). Homecoming: Reclaiming and Championing Your Inner Child. Bantam Books.
  • Jung, C.G. (1959). The Archetypes and the Collective Unconscious. Princeton University Press.
  • Miller, A. (1981). The Drama of the Gifted Child: The Search for the True Self. Basic Books.
  • Siegel, D.J. (2012). The Developing Mind: How Relationships and the Brain Interact to Shape Who We Are. Guilford Press.
  • Maté, G. (2021). The Myth of Normal: Trauma, Illness and Healing in a Toxic Culture. Penguin Random House.