ESCREVER COMO PROCESSO TERAPÊUTICO

“A dor da perda acaba por ser um lugar que nenhum de nós conhece até o alcançarmos.”

Este livro é um testemunho literário que ultrapassa a esfera individual de alguém que atravessa um luto para alcançar uma dimensão terapêutica coletiva. Através da escrita, Joan Didion reconstrói a sua identidade fragmentada pela morte súbita do marido, o escritor John Gregory Dunne, enquanto acompanha a fragilidade da filha hospitalizada, o que faz entre o delírio emocional do “pensamento mágico” e uma forma de catarse que revela o luto não apenas como dor, mas como possibilidade de cura, reflexão e reestruturação subjetiva.

A morte desorganiza. Rompe os mapas interiores. Quando Joan Didion inicia a escrita de O Ano do Pensamento Mágico (2005), fá-lo com o objetivo de compreender o inominável: a perda do companheiro de uma vida. O livro, apesar do seu caráter pessoal e autobiográfico, transcende a experiência individual para oferecer uma cartografia do luto enquanto processo coletivo de reinvenção.

Escrever sobre e morte do marido é para Didion uma forma de não viver o luto isoladamente. A perda de John acontece no contexto da hospitalização da filha, Quintana Roo, o que tornou esse momento ainda mais difícil, sobrepondo várias camadas emocionais de dor.

“A vida muda rápido. A vida muda num instante. Sentas-te para jantar e a vida que conhecias termina.”

O luto afeta a rede de relações que constitui a vida da escritora, que sofre não apenas pela ausência física do companheiro que viu partir, mas também pela reconfiguração do seu lugar na dinâmica familiar e social. Didion expõe esse desequilíbrio através da minúcia com que narra os pequenos gestos do quotidiano, como, por exemplo, manter os sapatos do marido, revelando uma tentativa inconsciente de manter uma certa coesão interna:

“Sabia que John estava morto. Mas ainda esperava que ele voltasse. E precisava de ter os sapatos dele ali para quando voltasse.”

O “pensamento mágico” que incorpora o título refere-se à recusa inconsciente da realidade da morte. Didion reconhece que o marido morreu de forma racional, mas emocionalmente age como se ele ainda pudesse regressar. Este mecanismo de defesa, frequentemente observado em processos de luto, adquire na obra uma função narrativa: o pensamento mágico suspende a lógica temporal e cria um espaço liminar entre a vida e a morte, onde a palavra pode ser uma verdadeira ferramenta de sobrevivência.

“Não conseguimos imaginar que o que nos aconteceu um dia possa acontecer de novo. É como se aceitássemos a morte, mas não a sua repetição.”

Ao verbalizar o absurdo, como a impossibilidade de doar os sapatos, Didion acolhe o irracional como parte legítima da experiência do luto. A escrita traduz-se num ritual terapêutico que permite ordenar o caos interno, sem o negar. Este acolhimento da dor, sem moralização nem pressa de superação, aproxima-se de práticas terapêuticas contemporâneas baseadas na aceitação e no mindfulness. É assim que a escrita autobiográfica de Didion funciona como um espaço seguro para a reconstrução simbólica do vínculo com o marido. Tal como defende Donald Winnicott, é no espaço potencial entre o real e o simbólico que o sujeito pode brincar, criar e curar-se. Didion escreve não para esquecer, mas para lembrar de forma organizada, para dar nome ao que a desestrutura:

“Escrevo inteiramente para descobrir o que estou a pensar, o que estou a olhar, o que vejo e o que isso significa.”

A repetição de certas frases, o retorno aos mesmos momentos, o encadeamento não linear da narrativa, tudo isso denuncia a tentativa de integração psíquica do trauma. Neste manifesto de vulnerabilidade que Didion oferece ao leitor, transforma a dor individual numa experiência coletiva de partilhada, abrindo espaço para uma dimensão terapêutica que toca a todos, em que o reconhecimento empático substitui o isolamento. Tudo através da palavra que nomeia e da memória que organiza o caos.

O Ano do Pensamento Mágico extravasa um relato íntimo de luto. É, na verdade, uma obra terapêutica que ilumina as complexidades do processo de perda sem pretensões nem urgências no que ao afastamento da dor respeita. Uma espécie de contemplação da fragilidade da vida como ponto de partida para a reinvenção. Este livro pode não ser cura, mas oferece um caminho possível para quem atravessa a dor da perda.

Porque “o luto, quando chega, não se parece com nada do que esperávamos.”