Querido Avô
Houve um tempo em que nem todos tinham o direito de pertencer.
Um tempo em que os segredos eram tidos como proteção, e o silêncio como forma de sobrevivência.
Um tempo em que as relações fora do casamento eram escondidas, em que os filhos “ilegítimos” carregavam culpas que não lhes pertenciam, e em que muitas histórias foram deixadas nas margens da memória familiar.
Tu vieste desse tempo.
E a tua ausência tornou-se presença: uma ausência tão marcada, que se transformou em silêncio herdado.
Não sei o teu nome.
Não sei o tom da tua voz, nem o traço do teu rosto.
Durante muito tempo, foste apenas um espaço em branco na árvore da família — um vácuo, uma pergunta sem resposta.
Mas hoje, reconheço-te.
Mesmo sem saber quem foste, sinto que a tua história vive em mim de alguma forma.
Talvez no mistério que sempre envolveu a tua ausência.
Talvez nos ecos de uma dor que não me pertence, mas que carrego sem perceber porquê.
Ou no nó na garganta que aparece quando me dizem “tu tens direito a saber de onde vens”.
Não te escrevo para julgar.
Não te escrevo para exigir o que não pudeste dar.
Escrevo-te para te incluir.
Para te dar um lugar no meu coração e no nosso sistema.
Porque tu estiveste aqui, ainda que ausente. E a vida chegou até mim também por ti.
Sei que, antes de mim, vieram muitos. E que cada um fez o melhor que pôde com o que sabia.
Talvez tenhas tido os teus próprios silêncios, feridas, lutas e impossibilidades.
Talvez a tua ausência tenha sido uma escolha. Ou talvez não tenhas tido escolha alguma.
Eu não sei.
Mas hoje escolho parar de repetir esse vazio.
Escolho ver-te, mesmo sem rosto.
Honrar-te, mesmo sem história.
Libertar-me do peso que não compreendo, e libertar-te também.
Tu és parte da minha história,
mesmo que nunca tenhas estado presente na minha vida.
Com respeito,
Com amor,
Eu devolvo-te o teu destino,
E sigo com a força da vida que passou por ti e chegou até mim.
Com gratidão,
Tua neta
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