Quando a série “Um Novo Eu” foi lançada na Netflix há dois anos atrás, a pergunta que nos surgiu foi: De quem é o coração que escreveu esta história com tanta sensibilidade, beleza e criatividade? Quem foi capaz de criar tão magistralmente esta série de ficção turca que nos conduz ao maravilhoso mundo do pensamento sistémico e fenomenológico das constelações familiares? Foi com esta inquietação que chegámos a Nuran Evren Sit, a escritora e dramaturga turca que conseguiu retratar cinematograficamente o impacto desta ferramenta terapêutica e fenomenológica ao contar a história de três amigas, Sevgi, Ada e Leyla. Em conversas intimistas, a Nuran contou ao Affectum que esta série, tal como tudo na vida, tem as suas raízes na história do seu sistema familiar:
“Há uns anos atrás, encontrei uma carta que o meu avô me escreveu quando eu tinha seis anos, dizendo que o meu nome Evren tem muito a ver com o meu carater e com o meu futuro. Ele escreveu que me imaginava a contar histórias ao mundo inteiro, honrando o meu nome e fazendo com que as pessoas se reúnam à volta de um filme, de um livro ou de uma peça de teatro. E essa carta extraordinária deu-me coragem para escrever “Um Novo Eu””.
A série leva-nos numa viagem com as três amigas Sevgi, Ada e Leyla, pela linda cidade de Ayvalik na costa do mar Egeu, na Turquia, onde são confrontadas com dilemas e desafios que as remetem para as histórias dos seus antepassados e que, de forma inconsciente, elas compensam ou reparam, tomando consciência de que vivem:
Eu por vocês, Eu como vocês, Eu sigo-vos.
Tudo por um profundo sentimento de pertencimento e amor cego. Afinal, todos “somos menos livres do que pensamos”, como ensinou Anne Ancelin Schutzenberger, e talvez a grande viagem da vida seja o reencontro feliz com a história dos nossos antepassados, com os nossos pais e com nós próprios. Na verdade, inconscientemente, repetimos histórias e situações que foram dolorosas, excluídas, ocultas, veladas e mantidas em segredo, pois a memória do sistema familiar nunca se perde. O que é excluído e não é visto poderá ser um padrão ao longo de gerações e resultar, inclusivamente, numa doença que chega para se incluir o que foi excluído, para se ver o que não foi visto, como vemos na série.
A propósito destas dinâmicas familiares que atravessam gerações e nos prendem às histórias que viveram os nossos antepassados,a Nuran diz-nos que tem “observado os efeitos das histórias das nossas famílias nas nossas vidas ao longo dos anos. É tão óbvio quando se presta realmente atenção a isso. Penso que quem somos todos nós é muito sobre como utilizamos o nosso passado para construir o nosso futuro. Viver para contar é o que eu faço inconscientemente, acho eu. É como quando eu escrevo, personagens, eventos, os diálogos vêm de algum lugar onde já estive antes. Quando medito e me foco neste ofício com a intenção de deixar que a minha escrita seja o caminho que o coletivo mais precisa, com as palavras que precisam de ser ditas em voz alta e que inspiram as pessoas… As palavras vêm facilmente. Sinto que estou a canalizar o que já lá está para todos. Tento não ficar presa em julgamentos, tomando partido, ou tentando dar uma interpretação à audiência quando escrevo.”
A segunda temporada da série reconhece expressamente Bert Hellinger como pai das constelações familiares, o que dá ainda mais força e seriedade ao trabalho desenvolvido pela personagem Zamán, quem conduz os processos terapêuticos elevando a série para um lugar de muita expansão de consciência. Em todos os episódios temos a possibilidade de ampliar o nosso olhar ao vermos a constelação familiar como um meio de cura e de transformação das vidas das suas personagens, sendo visivelmente belo e necessário o impacto do passado e dos traumas transgeracionais para que cada um se liberte e escreva a sua própria história. Assim, é através do reconhecimento da lealdade ao sistema familiar que o poderemos aceitar e honrar para seguir em frente.
Se ainda não viste “Um Novo Eu”, convidamos-te a ver! É um brilhante trabalho cinematográfico sobre as Leis do Amor num cenário com o Mar Egeu no horizonte e tudo o que isso representa no mundo das emoções. Uma adaptação poética do tanto que os desequilíbrios e desajustes da ausência de pertencimento, do respeito pela hierarquia familiar e da falta de equilíbrio entre dar e receber são a origem de todos os traumas e dores do ser humano.
Nuran fala-nos também da necessidade em dar voz a algo muito forte que tem dentro de si, como se fosse uma espécie de mensageira da nova era: “Venho de uma terra de grandes poetas, filósofos, escritores, e pessoas revolucionárias, tais como Rumi, Şems, Hacı Bektaş… ultimamente Mustafa Kemal Atatürk. Todos eles estavam para além do seu tempo; todos eles trouxeram novas formas de pensar e de viver para as pessoas. Todos eles tiveram a coragem de lutar, de quebrar tabus, de iluminar as pessoas. Todos mudaram a vida de gerações e ainda estão a mudar. Esta terra, Turquia, Anatólia, tem muito a oferecer ao mundo no sentido da sabedoria, perceção da unidade. Esta terra é uma ponte que liga o Oriente e o Ocidente, o moderno e o tradicional, a ciência e a espiritualidade. Esta terra tem vivido muitas guerras, tragédias, tantas mudanças ao longo dos séculos. Tem milhares de anos de experiência num centímetro do seu solo. Por isso, eu gostaria de transportar um pouco da herança mágica desta terra nas minhas veias. Qual é a minha mensagem ao mundo como Evren… Não uma cópia do que já foi dito antes. Esta é uma pergunta que carrego comigo desde criança. Acho que ainda não encontrei a resposta, mas tento dizer aquilo em que acredito verdadeiramente, só posso escrever sobre o que me parece honesto. Como escritora, gosto mais de fazer perguntas do que fazer declarações. Tento ter empatia em vez de juízos de valor. Todos nós somos uma gota no mar, mas a gota em si contém a eternidade, como dizia Rumi…”
Uma série para ver e rever tantas vezes quantas as necessárias para sentirmos ao longo da vida a força do nosso sistema familiar, tomando consciência dos laços invisíveis que nos ligam aos antepassados, e também da origem dos nossos medos e sintomas, tudo em nome da coragem de seguir em frente de forma mais livre e saudável.
Artigo publicado na Revista SIM n.º 298 de setembro de 2024

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