“Faço longas cartas para ninguém”

Adriana Calcanhotto

Escrever cartas que nunca serão enviadas pode parecer estranho, mas, para quem já experimentou esta prática, sabe que há ali uma espécie de alquimia emocional. Ao dar corpo às palavras que se carregam em silêncio, abre-se caminho para que algo se transforme dentro de nós.

Escrever uma carta terapêutica é muito mais do que redigir um texto. É abrir uma janela entre o consciente e o inconsciente, permitindo que emoções reprimidas, pensamentos não ditos e sentimentos há muito guardados encontrem um lugar de expressão. Tal como propõe Carl Gustav Jung, a cura começa no momento em que damos voz ao que está na sombra. A escrita pode ser esse espaço seguro onde os conteúdos ocultos da psique encontram forma e sentido.

Escrevemos para alguém, pai, mãe, ex-companheiro, filho, amigo, chefe, um amor sonhado, mas na verdade, escrevemos para nós. A pessoa a quem se dirige a carta pode até ser alguém que já não está presente fisicamente ou que ainda não se conhece, pois o mais provável é que nunca leia o que está escrito. Ainda assim, esse gesto íntimo de colocar no papel o que ficou por dizer ou o que diríamos nas nossas projeções é, muitas vezes, um passo fundamental no nosso próprio processo de cura e desenvolvimento pessoal.

Como nos ensina a psicologia narrativa, ao contarmos a nossa história, ainda que em silêncio, reescrevemo-nos. E isso é especialmente verdadeiro quando usamos a forma da carta como um espaço de diálogo íntimo, estruturado, e profundamente pessoal.

O que pode acontecer quando escreves uma carta sem enviar:

Conexão profunda com alguém: ao escrever tudo o que nunca foste capaz de dizer, libertas a tua voz interior. O outro é o pretexto; o verdadeiro destinatário és tu;

Organização do caos interior: pensamentos soltos, emoções confusas e memórias difusas ganham forma. A escrita ajuda a mente a estruturar e clarificar.

Libertação emocional: chorar enquanto escreves, sentir raiva, ternura ou compaixão, tudo é permitido. A carta é um contentor seguro para o desabafo e a catarse.

Autocompreensão: através da escrita, tornas-te observador de ti mesmo. Percebes padrões, reconheces feridas, revês reações e descobres novas perspetivas.

Cura emocional: ao escrever para alguém que te magoou, por exemplo, podes libertar ressentimentos e, talvez, encontrar uma forma de aceitação, não para o outro mudar, mas para tu descansares.

Redução da ansiedade: em momentos de angústia, a carta funciona como uma âncora. Escrever pode ser uma forma de “tirar de dentro” o que oprime.

Mais do que um exercício solto, a carta pode ser ritualizada. Podes queimá-la, enterrá-la, rasgá-la, ou guardá-la num local especial. O importante é que esse gesto simbólico marque a tua intenção porque algo foi dito, libertado, transformado. Assim como nos rituais antigos, há poder no simbolismo, e a psique responde a esses gestos com alívio e integração.

O psicólogo James Pennebaker, conhecido pelos seus estudos sobre os efeitos da escrita expressiva, demonstrou que escrever sobre experiências emocionais profundas melhora o sistema imunitário, reduz sintomas de ansiedade e depressão, e promove o bem-estar geral. Não é magia, é a ciência a validar o que o coração já sabe. Escrever cura.

A quem escreverias hoje uma carta?

Há dentro de cada um de nós uma carta por escrever. Talvez a alguém que já partiu, talvez a alguém que nunca verdadeiramente chegou. Talvez a uma parte tua, talvez à criança que foste, à versão tua que ainda espera reconhecimento, ou ao teu eu futuro, que precisa de orientação.

Escreve essa carta. Não precisa de ser bonita, nem coerente, nem grande ou pequena. Só precisa de ser verdadeira e ser escrita pelo coração.

E depois, deixa-a ir. Porque, muitas vezes, libertar palavras no papel é tudo o que o coração precisa para começar a sarar.