“Eram, tanto quanto possível, os felizes. Porque a felicidade não se substituía ao resto. A felicidade acumulava-se. Era do acumulado do que se fez que se podia alcançá-la. O Crisóstomo a chegar tão perto, a Isaura ainda tão longe. Mas, um e outro, melhores por se juntarem. Acumulavam-se.” Valter Hugo Mãe, in O filho de mil homens

Nesta obra magistral e absurdamente sensível de Valter Hugo Mãe, “O filho de mil homens”, percebemos a felicidade como um processo contínuo, uma construção que se edifica no tempo, e não um estado isolado ou um instante efêmero. “A felicidade acumulava-se“, palavras belas que revelam a felicidade como algo que transcende a mera ocorrência de bons momentos bons. Se a felicidade é algo que se constrói, então não se apresenta como um fim em si mesma, mas como um resultado do que se vive e se partilha. Crisóstomo, um pescador solitário, decide fazer o seu próprio destino e inventa uma família quando chega aos quarenta anos. Porque o amor é, mais do que tudo, a vontade de amar. Apesar de Crisóstomo e Isaura estarem em diferentes estágios dessa acumulação, o extraordinário é que ambos se transformam pelo simples facto de estarem juntos. Desta forma, a felicidade não se resume a um ponto de chegada fixo e universal, mas a um percurso singular, cujas marcas se somam e se entrelaçam aos encontros que se vão somando na vida.

A felicidade acumula-se porque vai além do que é instantâneo, construindo-se ao longo do tempo, camada por camada. Diferente da ideia comum de felicidade como algo momentâneo e fugaz, Valter Hugo Mãe convida-nos a olhá-la como um processo de sedimentação. Cada experiência, cada gesto de afeto, cada superação de dor e cada encontro significativo somam algo a essa construção contínua. Nesse sentido, a felicidade não apaga as dores do passado, mas integra-as na sua formação, porque também elas fazem parte. Ao acumular-se, ela torna-se mais robusta, mais densa, mais enraizada na essência de quem somos. É essa soma, e não uma única explosão de alegria, que gera uma sensação duradoura de plenitude.

Esta ideia ressoa profundamente com o conceito de amor. O amor, quando visto sob esta lente ampliada, é também um acumular, uma história de momentos partilhados, desafios superados, afetos construídos. Não é algo instantâneo ou completo desde o início; ao invés expande-se na exata medida em que é vivido e explorado. Muitas vezes, somos levados a pensar que o amor e a felicidade são sentimentos que nos invadem de forma avassaladora, como epifanias solitárias e intensas. Mas Valter Hugo Mãe sugere-nos algo diferente: o amor e a felicidade são o acumular do que vivemos e escolhemos partilhar.

Nesse sentido, a plenitude não está na ausência de dor, mas na soma de todas as experiências. A felicidade não anula as adversidades, mas constrói-se a partir delas. E o amor não é um dom que simplesmente se recebe, mas um conjunto de gestos, de presenças, de tempos divididos e reconstruídos. Acumular-se é, assim, um verdadeiro ato de amor: o que há de mais profundo do que permitir-se ser atravessado pelo outro, sem a pretensão de perfeição, mas com a certeza de que cada encontro, cada relação, nos transforma e amplia?

Crisóstomo e Isaura representam diferentes momentos desse acúmulo, o que expressa uma verdade fundamental: a felicidade e o amor são processos desiguais, individuais e, ainda assim, coletivos. O que importa não é estarem os dois no mesmo ponto do caminho, mas reconhecer que a construção é sempre um movimento conjunto.

A felicidade é a soma do que se vive, e o amor, a arte de acumular-se.