“De que serve uma decisão judicial se as partes continuam em conflito?”
A justiça está a mudar, a abrir-se a novas metodologias que permitam, por um lado, descongestionar os tribunais e, por outro, atribuir à justiça efeitos mais duradouros. O que significa “efeitos duradouros”? Essa questão começou a incomodar a advogada Paula Viana. Ao longo dos 25 anos de carreira, não via resultados das decisões produzidas nos julgamentos, e decidiu procurar novas abordagens. Na Justiça “convencional”, há uma decisão do tribunal em que uma parte ‘perde’ e outra ‘ganha’, utilizando linguagem corrente, mas a decisão dificilmente terá um efeito duradouro e eficaz no que respeita ao conflito entre as partes, porque o que geralmente acontece é haver retaliação de quem perde, o que resulta muitas vezes numa sucessão infindável de processos judiciais, especialmente nos de menores. A solução para o conflito não é possível com uma abordagem estritamente jurídica, porque o sistema judicial é racional e não dá resposta às questões emocionais que alimentam o conflito. Como acabar com isto? Paula Viana acredita – e tem dados que o comprovam – que a Justiça Sistémica é a solução. Saiba como funciona esta abordagem multidisciplinar com efeitos extraordinários nos processos de divórcio, conflitos parentais e partilhas.
Porque é que, passados mais de 25 anos, a Paula Viana decidiu mudar a sua forma de trabalhar, focando-se exclusivamente na justiça sistémica?
Trata-se de uma abordagem recente em Portugal, apesar de já ser seguida por alguns juízes em tribunais de família e menores. O Dr. Joaquim Silva é o pioneiro no recurso às constelações familiares e outras metodologias multidisciplinares em processos tutelares cíveis de regulação das responsabilidades parentais, que é uma das ferramentas desta abordagem de justiça sistémica, há já oito ou nove anos. Tem imensos resultados documentados no Tribunal de Mafra e usa uma série de ferramentas de pacificação de conflitos, como as constelações, em alternativa à via mais convencional. Mas também o juíz, Dr. António Fialho merece destaque na divulgação e promoção desta prática em que as constelações foram usadas com êxito em vários processos, obtendo-se assim maior equilíbrio e paz para todas as partes envolvidas. Falar de justiça sistémica é falar, para além dos processos jurídicos, dos processos internos que atravessam as pessoas e das dinâmicas que sustentam as relações humanas. A grande inovação desta abordagem sistémica é a pacificação das relações que procura, e desta forma chegar a uma solução mais definitiva dos conflitos, especialmente nos tribunais de família, em que, quando há uma decisão em que alguém ganha e alguém perde, todos perdem. Quando isso acontece, a decisão judicial dificilmente terá um efeito duradouro e eficaz no que respeita ao conflito entre as partes, porque o que geralmente acontece é haver retaliação de quem perde, o que resulta muitas vezes numa sucessão infindável de processos judiciais, porque são ações que se estendem ao longo dos anos enquanto os filhos estão na dependência dos pais. Trabalho como advogada há 25 anos, com muita incidência nas questões da família, e o que vejo são processos com imensos incidentes e apensos, 10, 12 e até 19! 25 anos de experiência dizem-me que alguma coisa está mal nesses processos de sistemas separativistas e combativos que arrastam pessoas em conflito ao logo de tantos e tantos anos. Mesmo ganhando ações e representando uma pessoa que aparentemente parece ter razão, a questão é que aquela família que está em conflito é uma família desavinda, e os processos que se repetem expressam isso mesmo. Conseguir uma resolução definitiva e eficaz para as partes em litígio pressupõe uma nova forma de ver o conflito, considerando-o ao serviço da paz, do equilíbrio e da reconciliação. De um sistema dual, combativo e separativista típico da justiça convencional, passamos para uma postura integradora que procura o equilíbrio e a paz para todas as partes do sistema. Trata-se a justiça como um campo de pacificação, e não de combate.
O ser humano gosta de ganhar, de ter razão.
Quando um ganha e o outro perde, ninguém ganha. O pai que não paga alimentos e que foge durante anos de pagar alimentos ao filho, tem uma questão pendente que não é com o filho. Nenhum pai quer privar o filho dos alimentos. A questão estará certamente entre o pai e a mãe do filho, e, por isso, os processos arrastam-se em tribunal. As pessoas não olham para a raiz, para as dinâmicas que estão por detrás dos conflitos. Está provado que todo o comportamento humano é fruto da emoção, não vem do pensamento. Somos seres emocionais, e o sistema judicial é puramente racional. Por isso os tribunais resolvem as questões jurídicas – que têm atrás questões sociais, questões familiares, emocionais – de forma puramente racional. Algo não está certo. Aquilo que nos move na vida, que nos faz decidir ir por um lado ou por outro, é pura emoção e, muitas vezes, nós nem temos noção do quão condicionados estamos pela nossa história. O convite que eu faço com esta abordagem sistêmica é olharmos para a nossa história, porque muitas das reações e ações que nós temos estão ligados a padrões que repetimos e que vêm de trás: do nosso pai, da nossa mãe, dos nossos avós. As dores, sonhos, sensações, frustrações que eles viveram estão no ADN e está provado também que isto nos condiciona. O convite que a justiça sistêmica faz é olhar para um conflito sob este ponto de vista: olhar para todas as partes do conflito na sua individualidade e na sua história – e poderão estar aqui em causa também organizações, empresas – e aplicar ao processo esta metodologia inovadora, com base nas constelações sistémicas (familiares, jurídicas e organizacionais) e na terapia transgeracional.
É a primeira vez que se permite esta abordagem no Direito?
Sempre que procurava soluções alternativas para a solução de conflitos, sentia-me muito frustrada, e há uns anos atrás, ao receber no escritório filhos dos meus clientes em processos de família a repetirem a história dos seus pais, com os mesmos comportamentos deles, percebi que alguma coisa estava errada. Procurei muito para além da mediação e da comunicação não violente, mas nada funcionava, nem em Portugal nem no estrangeiro. Na minha busca encontrei um juiz brasileiro, Sami Storch, que aplica esta abordagem há quase 20 anos– embora numa realidade cultural, social e política completamente diferentes, com quem fiz formação. E também uma advogada argentina, Cristina Llaguno, que é uma grande inspiração porque tem um trabalho amplamente reconhecido há mais de 30 anos com esta abordagem e com resultados incríveis. Posso falar-lhe, também, na Maria Luz Godoy, uma advogada espanhola que trabalha com este sistema há 15 anos… A abordagem sistémica tem como pilares a filosofia do Bert Hellinger, que tem princípios como as “ordens do amor” e as “ordens da ajuda”, que são a transposição de regras e princípios da natureza para as relações humanas. Se aplicarmos estas regras às nossas relações, teremos seguramente relações mais equilibradas, saudáveis e pacíficas. A isto soma-se a identificação dos padrões que se repetem e das lealdades invisíveis com a terapia transgeracional, de modo a podermos chegar à raiz de um conflito. Esta é uma das minhas grandes paixões, é a área do trabalho que mais me fascina. Porque é que o pai ou a mãe privam o filho de visitas? Vamos a história deles, vamos à identificação. Depois, é mais fácil encontrar a solução para aquele conflito, na própria história. O incrível desta abordagem é que, ao contrário da mediação, não são necessárias as duas partes estarem a fazer este trabalho. Na mediação, têm de estar os dois com interesse na solução, pressupondo sempre o acordo das partes, e aqui não. Basta que uma das partes olhe sistemicamente e faça este trabalho, para que haja uma alteração no curso daquele conflito. Com a justiça sistémica não se racionaliza, que é o que se faz na mediação, e assim complementam-se.
Esse tipo de resolução funciona com ‘casos antigos’? Imagine um casal desavindo há 15 anos, em que já há muitos sentimentos negativos de ambas as partes, muito ódio até, e que estão em processos sobrepostos em tribunal…
Sim, funciona. Os meus primeiros processos resolvidos através desta abordagem sistémica estavam cristalizados há anos e, bastou uma das partes fazer uma constelação ou a “olhar sistemicamente para”, que tudo mudou. Fazendo o trabalho com uma das partes, o impacto é enorme na forma como a outra parte o vai ver e tratar o mesmo assunto. Se alguém deixa de ter uma atitude bélica, a forma como as pessoas de vão relacionar no conflito muda. Tudo começa por reconhecer que o conflito não está fora de nós, mas sim dentro de nós, e por isso nos diz tanto.
“Os filhos são os principais interessados em que o efeito de uma decisão de um processo parental seja duradouro”
Se o tribunal decreta que o pai pode ver o filho uma vez por semana, os intervenientes têm de aceitar.
Sem dúvida, mas isso resolve apenas a parte jurídica, define de que forma será o futuro da criança, mas não resolve o conflito latente entre pai e mãe. O que está pode detrás do conflito não fica resolvido. Os tribunais continuam a ser necessários. Isto tudo é uma evolução, é um novo paradigma, um complemento que poderá dar luz ao que está na origem dessa ação, levando as partes a uma tomada de consciência e à auto responsabilização. O ideal seria sempre fazer esta abordagem antes de se chegar a tribunal, mas a eficácia desta abordagem também existe depois dos casos já estarem nas estâncias judiciais.
Qual a taxa de sucesso dessa abordagem?
Nos processos em que trabalhei até agora, a taxa de sucesso é elevadíssima, e sucesso aqui equivale à paz no sistema que estava em conflito. No entanto, também há os que não se resolvem logo: há momentos em que todos perceberam a origem do problema, mas não é o momento certo para o enfrentar, e é preciso dar tempo para que as pessoas se sintam preparadas. Tudo tem um tempo certo. Quando as pessoas estão comprometidas consigo próprias estarão comprometidas com a resolução do conflito, e aí o sucesso é garantido. De referir que no Brasil esta abordagem é amplamente aplicada com resultados extraordinários, bem como na Argentina e em Espanha, onde inclusivamente decorre um programa com reclusos há mais de 12 anos numa cadeia, com resultados que estão a ser documentados por uma comissão para o efeito. À semelhança do trabalho que fez Dan Booth Cohen nos Estados Unidos e cujos resultados estão documentados no seu livro “Levo o teu coração no meu coração, As constelações familiares e o sistema penitenciário”.
Há casos de pessoas que andam em processos consecutivos, há vários anos, por causa de um metro de terra, de uma pedra mal colocada. Faz assim tanta diferença na sua vida?
Faz, porque essa pedra tem uma história e é algo diferente para cada uma das partes envolvidas. As nossas ações não são atos isolados, todos fazemos parte de um sistema que é afetado por tudo o que fazemos. A forma como cada um vê a pedra depende da sua própria história e da história dos seus antepassados. Porque todos os sistemas têm uma ordem, e todas as ordens obedecem a leis, e o sistema familiar também: pertencimento, hierarquia e equilíbrio entre dar e receber. Há casais que me chegam aqui com dinâmicas diferentes, em que para um a traição é uma coisa e a mesmo facto, para o outro, algo diferente; e para outro casal, noutro contexto, poderá ser diferente e com significado e importância diferentes. Temos de olhar sempre para a história daquele casal, daquela pessoa e perceber o impacto que a situação tem nas suas vidas. E para que isto aconteça, é fundamental que cada um se conheça a si próprio e às suas emoções, pois a maior missão que temos na vida é ser quem somos e viver o que realmente queremos.
Na abordagem sistémica, também é possível ‘convocar’ outras especialidades para apoiar no processo?
Sim, mais do que possível é fundamental. É uma abordagem que eu de certa forma tenho há já muitos anos. Muitas vezes as pessoas chegavam aqui com temas de divórcio, menores, com problemas de partilhas e muitas vezes eu encaminhava-as para uma terapeuta que é hoje a minha sócia no Affectum, a Sofia Cid, com consentimento das partes, para perceberem as dinâmicas emocionais e psicológicos que estavam na base daquilo que fazem e das decisões que tomam. Quando alguém chega aqui com seus problemas, com o marido, com os filhos ou com os pais, tem à frente a grande possibilidade de dar um salto quântico enquanto pessoa. Há sempre duas formas de olhar para o conflito: ou fazem uma guerra para ver quem ganha e quem perde – e aí ninguém vai ganhar, todos vão perder, ou escolhem ampliar o olhar para além do conflito e incluir. Incluir tudo, porque humanamente somos instrumentos de paz e não de guerra. A justiça sistémica olha o conflito através da unidade. Além de que todas as dimensões que estão naquela relação que também tem contornos jurídicos, que é social, familiar, emocional, não fica resolvida com uma sentença, por muito brilhante e eficaz que seja. Uma sentença não cura o sistema, porque a paz não chega com a mera aplicação da lei. Por isso, o convite que fazemos é olhar para essas dinâmicas, para essas relações que estão na base do conflito e ampliar a consciência. É olhar para a sua história e para a história dos seus antepassados.
Haverá um curso de justiça sistémica em breve. Fale-nos dele e de que forma os pares – advogados e juízes, principalmente, olham para esta abordagem.
Já fizemos duas edições do curso de justiça sistémica no Affectum, e faremos, em novembro, a terceira edição, ligeiramente alterada, melhorada, dirigida a todas as pessoas que pretendam olhar os seus conflitos e melhorar as suas relações. Poderemos dizer que os profissionais do direito poderão ter especial interesse por causa da natureza dessas profissões, mas na verdade o curso destina-se também a terapeutas, pedagogos, pais e filhos. Iremos integrar alguns os casos que acompanhamos, porque são os seus resultados que efetivamente validam esta metodologia, a eficácia das decisões e os seus efeitos nos processos. É essa eficácia e essa pacificação da abordagem sistémica e consequentes resultados que justifica e fundamenta a aplicação desta abordagem tão transformadora. Agora, além dos meus processos, acompanho também processos de colegas que pretendem alcançar soluções pacificadoras e eficazes. Eu sou advogada, facilitadora de constelações e terapeuta transgeracional, mas a maior parte dos advogados não tem esta formação, o que não invalida que possas olhar sistemicamente os processos que lhe estão confiados. É importante que os meus colegas, procuradores e juízes, percebendo quais as leis sistémicas que estão afetadas nos conflitos em que estão a trabalhar, possam fazer uso desta abordagem para encontrar soluções efetivas e duradouras, nomeadamente, nas questões de parentalidade. Nos cursos, costumam estar presentes procuradores, advogados, psicólogos, empresários, pais e mães, porque aprender a resolver os nossos próprios conflitos interessa a todos.
Imagino que muitos dos seus colegas, advogados, procuradores, gostem da ‘luta’ em tribunal, de ver quem ganha e quem perde de forma bastante acirrada, quase a ‘esfregar a vitória na cara do outro’. Há abertura dos agentes para esta abordagem em que a justiça de faz de forma mais pacificadora?
Na academia, somos preparados para a ‘guerra’, para o dual: vitória vs derrota, de um lado e do outro… Gandhi dizia que a verdadeira função da verdade é unir as partes que estão separadas, que é na verdade a grande mudança o que faz este novo paradigma da justiça. Eu acredito que podemos alcançar muito mais do que certezas de um lado, erro do outro, depoimentos de testemunhas, relatórios, etc, para termos uma resolução justa e duradoura. Acredito que muitas vezes há juízes que tomam uma decisão em função dessas provas, que são factuais, uma boa decisão judicial segundo as leis em vigor, mas que percebem, ao longo do processo, que poderia haver outro desfecho que servisse melhor as partes. Por outras palavras, a justiça faz o seu trabalho, mas acredito que podemos ir mais além. A decisão judicial não deveria ser o ponto de partida para outro processo de retaliação, mas sim o ponto final do conflito e reinício de uma relação que pretende a paz. Se as partes estiverem predispostas a ultrapassar o ‘bloqueio’ que as levou até ali, que é legítimo, todos ficarão a ganhar. Como lhe disse, principalmente nas questões da parentalidade, são as crianças sobretudo que ficarão a ganhar, porque se veem, muitas vezes, numa guerra que dura anos e que compromete a sua qualidade de vida. É isto que faz a justiça sistémica, porque, como disse a Madre Teresa de Calcutá, “Justiça sem amor não é justiça”.
3.ª Edição do Curso de Justiça Sistémica acontece dias 22 e 23 de Novembro

A perspetiva sistémica aplicada nas relações entre os homens promove um movimento multidisciplinar em expansão de pacificação dos conflitos em geral, dando lugar a um novo conceito de justiça. Se olharmos para as pessoas envolvidas no conflito como parte de um sistema a que todos pertencem, poderemos perceber a verdadeira questão por detrás do conflito, revelando-se o que estava oculto e restabelecendo-se, assim, o respeito pelas ordens do amor.
Este olhar ampliado sobre os conflitos está ao serviço da Paz e da Reconciliação, sendo uma mudança profunda de paradigma nas relações humanas porque facilita e promove uma maior compreensão da vida e uma convivência mais pacífica e harmoniosa entre os homens. A Justiça Sistémica convida cada um a ocupar o seu lugar de adulto e de responsável pela própria vida na procura das dinâmicas inconscientes que alimentam o conflito, para que desta consciência surja a construção de um novo caminho, saudável e equilibrado, até à solução.
Este curso é presencial, com uma componente teórica e uma prática. Todos os módulos terão atividades individuais e/ou em grupo para investigação e estudo dos temas, consolidação de conhecimentos e prática dos temas abordados. Este curso destina-se a todos os que procuram soluções pacíficas para os conflitos, quer pessoais, quer profissionais, podendo especialmente interessar a advogados, juízes, procuradores do Ministério Público, juristas, terapeutas, empresários, professores, fiscais, assistentes sociais, psicólogos e pais.
De 22 e 23 de novembro de 2024 – sexta e sábado
Horário: 9:30h/12:30 – 14h/18h
Saiba mais em Curso de Justiça Sistémica – 3.ª Edição – Affectum
ou geral@affectum.pt ou 915 270 270
FORMADORES:
Paula Viana – Advogada e Terapeuta Sistémica
Sofia Cid – Terapêutica Sistémica e Transpessoal
Entrevista publicada na Revista SIM n.º 298 de setembro de 2024
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