Clara sempre teve uma relação peculiar com datas. Era como se os números no calendário a perseguissem, sussurrando segredos que ela ainda não entendia. O dia do seu aniversário, 14 de março, sempre lhe pareceu carregado de algo que ela não conseguia explicar.
Certa vez, durante um almoço de domingo em família, Clara comentou sobre a sensação estranha que sempre sentia nesse dia. A sua avó, Ester, olhou para ela com olhos de quem sabia demais e, após um silêncio pesado, disse:
— Tu nasceste no mesmo dia em que o meu pai morreu.
O comentário caiu como uma pedra no meio da sala. Ninguém nunca falava sobre o bisavô de Clara. Ele tinha desaparecido da história da família, como uma página arrancada de um livro.
Curiosa e inquieta, Clara começou a investigar. Vasculhou o sótão da casa da avó Ester e encontrou uma caixa de cartas, fotografias amareladas e recortes de jornal. O seu bisavô, João, tinha sido um homem carismático, mas a sua vida terminara tragicamente num acidente de trabalho. Ele era pedreiro e caiu de um andaime no dia 14 de março, deixando a esposa grávida, com três filhos pequenos.
Clara sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Era como se ela tivesse sido “escolhida” para carregar algo daquele homem que ela nunca conhecera.
Naquela noite, Clara sonhou com João. Ele estava parado num campo aberto, com o céu tingido de laranja. Ele sorriu para ela e disse:
— Obrigado por me lembrares. Assim posso te dizer que não precisas carregar o que é meu. Vive a tua vida.
Quando acordou, Clara sentiu-se mais leve, mas o sonho deixou uma marca profunda. Decidiu procurar ajuda para entender o que aquilo significava e foi assim que conheceu Laura, uma terapeuta transgeracional.
Durante as sessões, Clara aprendeu sobre os padrões que atravessavam a sua família. A repetição de datas, a exclusão de histórias dolorosas e as lealdades invisíveis que moldavam destinos. Com o apoio de Laura, Clara participou de uma constelação familiar onde “viu” o lugar do bisavô João no sistema. Ele não estava esquecido, mas estava à espera de ser reconhecido.
Clara teve ali a oportunidade de dizer em voz alta: — Eu honro a tua vida e a tua história. Tu fazes parte, querido bisavô João.
Ao longo das semanas, a Clara percebeu mudanças sutis na sua vida. A sensação de peso no dia 14 de março deu lugar a um sentimento de gratidão. Ela passou a celebrar o seu aniversário como um tributo à memória do bisavô, conectando-se à força e à resiliência que ele deixou como herança.
No fundo, Clara compreendeu que as datas eram mais do que números. Eram portais, marcadores de histórias e emoções que atravessavam gerações. E, ao honrar o passado, ela abriu espaço para viver plenamente o presente, livre das correntes invisíveis que a prendiam.
E assim, o calendário de Clara deixou de ser um enigma. Tornou-se um mapa. Um mapa de pertencimento, cura e propósito.
Um conto de Affectum, dezembro 2024
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