“Todos nascemos filhos de mil pais e de mail mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fossemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.”

Valter Hugo Mãe, in O filho de mil homens

Quando a literatura reflete um admirável exercício de humanidade através da narrativa de personagens singulares que vivem e persistem para além do óbvio, porque confiam no invisível, é isto que acontece: um encontro magistral e poético da palavra escrita com as leis do amor que norteiam a existência humana. “O filho de mil homens” é este encontro, um livro de amor pela humanidade que nos invade quando se sabe que o sonho comanda a vida.

 Sistemicamente acredita-se que cada indivíduo é herdeiro de um legado invisível que extravasa a parte genética, um legado de histórias, emoções, sonhos e experiências daqueles que viveram antes. Somos, por isso, parte de uma teia invisível que nos antecede e nos atravessa, onde cada antepassado tem um lugar de pertencimento que, se ignorado ou excluído, pode reverberar e impactar a nossa existência.

A terapia transgeracional estuda justamente essas dinâmicas invisíveis, os legados emocionais e os padrões que se perpetuam através de gerações. Muitas vezes, carregamos dores que não são exclusivamente nossas, mas que herdamos de histórias inacabadas de nossos antepassados. Quando Valter Hugo Mãe escreve sobre “tanta gente, tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa”, convida-nos a reconhecer que a nossa existência é um elo numa longa corrente de vivências humanas. Trata-se de um convite para olharmos para trás, para depois seguirmos em frente, mais fortes.

Uma das leis do amor identificadas por Bert Hellinger é a lei do pertencimento, que nos ensina que todos os membros de um sistema familiar têm o direito a pertencer. Quando alguém é excluído ou esquecido, seja por dores não resolvidas, segredos ou rejeições, a própria família busca, inconscientemente, restabelecer esse equilíbrio, o que se pode manifestar através de padrões repetitivos ou dificuldades emocionais nas gerações seguintes. A solidão, na perspetiva sistêmica, é muitas vezes resultado dessa desconexão, da incapacidade de ver a teia que nos sustenta e nos vincula uns aos outros.

Se somos “irmãos uns dos outros”, como sugere o escritor, então a superação da solidão passa pelo resgate desses vínculos, pelo reconhecimento de que pertencemos a algo maior, muito maior. Esse pertencimento não significa apenas a presença de laços familiares, mas também o reconhecimento de que a nossa história pessoal é parte de uma narrativa coletiva. Quando olhamos para aqueles que nos precederam com respeito e acolhimento, podemos libertar-nos de pesos e dores que não nos cabem e, ao mesmo tempo, resgatar forças que nos foram legadas.

A solidão que Valter Hugo Mãe descreve como “a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo” dissipa-se no reconhecimento de que nunca estamos verdadeiramente sós. Somos herdeiros de uma rede de existências que nos antecedem, e é nesse reconhecimento que nasce o verdadeiro sentimento de si próprio, porque não somos sós.

Quando compreendemos na alma que os “mil pais e mais as mil mães” coincidem, que pertencemos a essa grande história coletiva e partilhada, conseguimos transformar a nossa forma de estar no mundo e vivemos, não como ilhas isoladas, mas como parte de uma teia ligada por inúmeros fios invisíveis e interligados, onde cada fio tem a sua importância e seu lugar. Cada um, sem exceção, porque “nunca estaremos sós”.