“A paz não é ausência de conflito. A paz é ausência de medo”.
Ursulla Franklin

A Justiça Sistémica surge de uma abordagem inovadora e revolucionária na resolução dos conflitos jurídicos, sendo a expressão fiel do que é o Direito consciente, aquele que olha primeiro para o conflito interno de onde resulta o conflito externo de modo a perceber quais as dinâmicas inconscientes que estão na sua base. Para este efeito, a Psicogenealogia afigura-se um recurso fundamental no sentido de averiguar a influência das gerações passadas no comportamento das partes enredadas nos processos, nos padrões emocionais e nos conflitos vividos pelas pessoas em causa.

A Psicogenealogia é uma arte e uma ciência”, diz Anne Ancelin Schutzenberger, pioneira dos seus conceitos e fundamentos e da terapia transgeracional. “É um processo que nos permite compreender e aproveitar ao máximo a nossa herança psíquica ou, se necessário, transformá-la”, pressupondo que todas as famílias carregam uma história que atravessa gerações e que é vivida de forma singular, deixando marcas emocionais profundas nos que ainda estão por nascer. É esta influência dos antepassados que estuda a Psicogenealogia, designadamente “na repetição de padrões psicológicos e até, às vezes, de acontecimentos de vida que se vão repetindo geração após geração, e podem ir até sete gerações para trás, incluindo pessoas que não conhecemos, mas sobre as quais temos alguma informação: ou porque nos foi contado ou porque tivemos acesso a ela”, explica a discípula e co-fundadora da Anne Ancelin Schutzenberger International School of Transgenerational Therapy, Manuela Maciel.

Partindo do pressuposto de que todos os problemas jurídicos são de antemão problemas emocionais, na medida em que todas as relações jurídicas são relações humanas, a Justiça Sistémica procura indagar onde está o amor e onde está o medo em cada conflito, em vez do que tradicionalmente a justiça defende ao decidir quem está certo e quem está errado. Desta forma, o mais importante passa por identificar os problemas emocionais e relacionais que emergem do conflito, muitas vezes resultado de padrões herdados que se repetem inconscientemente ao longo das gerações. Ao identificar e entender esses padrões, o que no âmbito de um conflito jurídico poderá ser feito apenas por uma das partes, é possível trazer à tona questões não resolvidas e promover uma mudança nos comportamentos atuais, rompendo o ciclo transgeracional. E é precisamente aqui que a Psicogenealogia atua neste campo da resolução dos conflitos, ajudando as pessoas a reconhecerem o tanto que certas dinâmicas familiares influenciam a sua forma de lidar com os desafios dentro da imensidão dos relacionamentos. Num contexto jurídico e também de mediação, a Psicogenealogia pode ser muito útil ao permitir que as pessoas envolvidas no conflito familiar, societário, organizacional, ou outro, identifiquem as raízes profundas do seu comportamento, o que facilitará por si só a comunicação entre as partes na medida em que abre espaço para algo fundamental nas relações humanas: a empatia.

A título de exemplo, poderá referir-se a importância de se entenderem os padrões herdados (como rivalidade entre irmãos, desrespeito pela hierarquia, traumas familiares não resolvidos, problemas de álcool e outras dependências, etc) como o passo mais importante na resolução dos conflitos inerentes nos processos de divórcios, heranças, responsabilidades parentais, questões de violência doméstica, na medida em que, reconhecendo essas questões, as partes envolvidas ganham uma nova perspectiva sobre suas ações e reações, o que facilita o processo de pacificação entre as partes. Esta compreensão profunda que a Psicogenealogia promove na resolução de conflitos atua ao nível do autoconhecimento e do desenvolvimento humano, favorecendo as soluções que partem das próprias pessoas envolvidas, que se assumem, desta forma, verdadeiramente responsáveis pelas suas vidas, gerando decisões mais conscientes e baseadas no entendimento de si e da sua história familiar.

É disto que se fala quando se invoca a pacificação dos conflitos que a Justiça Sistémica promove, o que será tanto mais possível quanto maior for a união entre estes dois saberes, a Justiça e a Psicogenelaogia. Deste casamento feliz resulta ser cada vez mais possível uma abordagem sistêmica na justiça, a par do modelo tradicional, em que o medo dá lugar ao amor e as verdadeiras decisões são internas e não externas. Esta humanização da Justiça que a Psicogenealogia reforça dá primazia à questão emocional, relacional e histórica, visando não apenas resolver o problema jurídico no imediato, mas transformar as dinâmicas que sustentam o conflito. E isto é paz, porque é “ausência de medo”.

Artigo publicado na Revista SIM n.º 300 de novembro de 2024