“Só quando aceitamos os nossos pais tal como são, com tudo o que nos deram e tudo o que não nos puderam dar, é que nos tornamos verdadeiramente livres.”
Bert Hellinger

O filme As Três Filhas (His Three Daughters), realizado por Azazel Jacobs e disponível na Netflix, é uma obra cinematográfica intimista e poderosa que mergulha nos meandros da parentalidade, das lealdades familiares e das feridas transgeracionais. O reencontro destas irmãs à volta do pai em fase terminal é um campo fértil para um olhar sistémico, pois, como acontece em todas as famílias, nem tudo é o que parece. Aquilo que à superfície parece uma história sobre irmãs a despedirem-se do pai, revela-se, no fundo, uma dança silenciosa entre pertença, reconhecimento e as feridas invisíveis da exclusão sistémica.

Katie, Christina e Rachel são três mulheres muito diferentes, cada uma com uma forma particular de se relacionar com a vida e com o pai. Quando são forçadas a estar juntas durante os últimos dias de vida dele, os papéis familiares, as expectativas, os silêncios e as feridas não resolvidas vêm à superfície com muita intensidade. Como em muitos sistemas familiares, a doença ou o fim de vida de um progenitor atua como catalisador para a revelação das dinâmicas ocultas.

Na visão sistémica, cada membro da família está ligado por vínculos invisíveis de pertença e lealdade. As irmãs não estão apenas a lidar com o luto iminente, mas também com o lugar que cada uma ocupou, ou tentou ocupar, no seio desta família.

Um dos elementos mais ricos do filme é a forma como nos mostra que, aos olhos de cada filha, o pai é um pai diferente. Não existe “o pai”, mas sim três pais, moldados pelas experiências, emoções, feridas e necessidades únicas de cada uma das filhas. Esta pluralidade de perceções é profundamente sistémica, considerando que cada filho constrói a sua imagem dos pais a partir do lugar que ocupa na hierarquia familiar, das suas vivências e daquilo que recebeu ou sentiu que não recebeu. Assim, o mesmo pai pode ser visto como cuidador, ausente ou até indiferente, dependendo da lente emocional de quem observa.

Reconhecer essa diferença é um passo importante no caminho da aceitação, permitindo que cada filha valide a sua verdade sem invalidar a do outro. E este é um dos grandes desafios nas famílias: abandonar a luta por uma versão certa da história para abraçar as várias realidades que coexistem no sistema. Cada uma das filhas parece representar um tipo arquetípico de relação com a parentalidade:

  • Katie assume o papel da filha responsável, aquela que cuida, que quer controlar e organizar tudo. Muitas vezes, estas pessoas são as que carregam o peso de manter o sistema coeso, em prejuízo de si próprias.
  • Christina tenta manter-se prática e racional, distanciada emocionalmente, mas carrega dentro de si um conflito profundo. Representa aquela filha que aprendeu a sobreviver pela funcionalidade, talvez desligando-se, para não sentir.
  • Rachel, por sua vez, parece mais descomprometida à primeira vista, mas é talvez quem mais busca conexão genuína. Carrega uma lealdade diferente, menos óbvia, mas profundamente emocional, com o pai que a escolheu, porque não é filha biológica. Foi perfilhada, cuidou do pai, esteve lá nos momentos difíceis, mas, aos olhos das outras, e do sistema familiar, esse lugar nunca lhe foi inteiramente reconhecido. Esta realidade toca numa das feridas mais profundas que trabalhamos em terapia sistémica: a injustiça do não-pertencimento.

Estas mulheres mostram como, numa mesma família, cada filho pode assumir funções diferentes em resposta àquilo que o sistema pede, muitas vezes de forma inconsciente.

Curiosamente, embora o pai esteja fisicamente presente (ainda que moribundo), ele permanece ausente como figura ativa. Este facto reforça uma das grandes feridas que o filme espelha: a orfandade emocional que tantas vezes coexiste com a presença física dos pais. E é neste vazio que muitas vezes os filhos se perdem ou se tornam pais dos seus próprios pais, uma inversão de papéis que, na visão sistémica, gera desequilíbrios profundos.

Com a morte iminente do pai, surge a possibilidade, ainda que dolorosa, de ressignificar o lugar que ele ocupava em cada uma das filhas. Não se trata de o julgar, mas de o reconhecer tal como foi, com as suas limitações e a sua humanidade. Esta é, muitas vezes, a chave para libertar os filhos do peso das expectativas e permitir-lhes seguir em frente de forma mais inteira. Como diria Bert Hellinger, “Só quando aceitamos os nossos pais tal como são, com tudo o que nos deram e tudo o que não nos puderam dar, é que nos tornamos verdadeiramente livres.”

As Três Filhas é mais do que um filme sobre o fim da vida. É um espelho daquilo que tantas famílias vivem em silêncio: as dores não faladas, as lealdades invisíveis, a dificuldade em sermos apenas filhos e não cuidadores, mediadores ou salvadores. Na prática terapêutica sistémica, este filme pode ser uma excelente ferramenta para explorar as temáticas da ordem, do pertencimento e do equilíbrio entre dar e receber. Porque, no fundo, cada despedida é também uma oportunidade de renascimento, quando olhada de forma consciente.