AS SUAS CORRENTES INVISÍVEIS
“Eu avisei-te que nunca me amarias sem sofrimento.”
Um livro que nos desconcerta para além da palavra escrita, confrontando-nos com a beleza trágica da própria condição humana. Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa, revela acima de tudo o quanto somos movidos por forças que nem sempre reconhecemos como nossas. Entre as páginas da obsessiva relação entre Ricardo e a “menina má”, emerge um tecido invisível feito de lealdades inconscientes e amarras sistémicas, fios subtis que entrelaçam a vida, destino, dor e identidade.
Ricardo, o protagonista, vive uma paixão que à primeira vista parece uma simples história de amor não correspondido. Mas um olhar mais atento, um olhar que vai além do visível e do que é dito, mostra-nos que o Ricardo está preso a algo muito maior do que a figura da mulher por quem se apaixona repetidamente. Ele está preso a um padrão. Uma fidelidade cega, silenciosa e inconsciente. Como se, ao amar a “menina má”, estivesse cumprindo um papel que lhe foi delegado por um ditame mais antigo, mais profundo, talvez até familiar.
E se olharmos para esse padrão como uma lealdade inconsciente? Um conceito sistémico que sugere que, por amor e pertencimento ao sistema familiar, muitas vezes repetimos histórias, muitas vezes de dor, sacrifício e submissão. Ricardo, o menino de classe média que sonhava ser parisiense, parece carregar uma fidelidade invisível à ideia de que amor exige sofrimento. Como se, inconscientemente, estivesse comprometido com um modelo de afeto sacrificial. Ele parece não escolher a “menina má”. Ele reconhece-a.
A cada retorno desta mulher, sob diferentes nomes e disfarces, o enredo repete-se. Mas o que parece escolha, na verdade, é compulsão. Ricardo tem tudo para ser livre, mas não sabe sê-lo. E ela, por sua vez, também carrega suas próprias amarras, uma mulher marcada por um passado de pobreza e exclusão, que aprendeu a sobreviver manipulando, trocando a identidade por sobrevivência. Não é vilã, como parece num primeiro plano. É só filha de um sistema que nunca lhe deu o direito de simplesmente existir. Ambos estão presos. Ambos são vítimas de dores e de histórias que não começaram neles.
Esta dança entre eles é, na verdade, um espelho das nossas próprias fidelidades invisíveis. Quantas vezes insistimos em relações, ideias ou caminhos que nos ferem, não por masoquismo, mas por lealdade a algo maior que não compreendemos? Quantas vezes repetimos o padrão dos nossos pais, dos nossos avós, de um país inteiro? Vargas Llosa, quiçá sem pretensões terapêuticas, desenha com precisão o que Bert Hellinger chamou de “ordem do amor”: quando a ordem está invertida, quando alguém carrega o fardo que não lhe pertence, o amor adoece. Ricardo ama demais. A “menina má” ama de menos. Nenhum dos dois está no lugar certo.
Mas há beleza nesse caos. Há beleza na possibilidade de olhar para essas amarras com compaixão, não como falhas de caráter, mas como tentativas de integrar e honrar um passado. E talvez, ao ler este romance, possamos também nos perguntar: a quem sou leal sem saber? O que repito sem querer? De onde vêm as minhas travessuras inconscientes?
Nem todos temos uma “menina má” para nos mostrar o espelho. Mas todos temos algo ou alguém que nos revela, que nos desvenda um pouco mais de nós. E é aqui, neste olhar para além do visível, que começa a verdadeira liberdade.
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