Cristina Llaguno, advogada argentina, terapeuta transpessoal e escritora, reconhecida mundialmente como pioneira na resolução sistémica de conflitos ao aplicar as constelações ao mundo jurídico, esteve à conversa com o Affectum para falar deste seu olhar amoroso sobre as relações. Certificada em constelações familiares sistémicas por Bert Hellinger, em psicologia sistémica pela universidade Cudec, no México, coordenadora académica da formação em resolução sistémica de conflitos da Universidade Humanista Viktor Frankl, autora de vários livros (Amor em movimento, Constelar para sanar, Divórcios amistosos, O dano invisível, entre outros), dedica a sua vida a difundir mundo fora a visão sistémica aplicada ao mundo do direito. Uma partilha imperdível sobre a extraordinária relação entre as emoções e a justiça, que agradecemos profundamente.

Affectm – Como pioneira do direito sistémico, e da ligação das constelações familiares com o direito, gostaria que falasses um pouco da tua história e como se deu este encontro do direito com o mundo das constelações familiares na tua vida.

Vou cumprir este ano 44 anos como advogada e dentro de um ano chego aos 71 anos. Quando tinha 33 anos adotei duas crianças e a necessidade de aprender mais sobre mim e como conviver com os miúdos levou-me a estudar psicologia nos Estados Unidos, na Grof Transpersonal Training, nada menos que com o maestro Stanislav Grof (psiquiatra checo). Durante 8 anos da minha vida estudei com ele e fiz a formação como terapeuta transpessoal e em 1999 certificou- me como terapeuta e recomendou-me estudar com Bert Hellinger.

Affectum – Nesse tempo continuavas a exercer advocacia?

Sim, trabalhava como advogada e sempre me dediquei à negociação internacional; em 1983 representei a Argentina numa negociação que durou 3 anos com a Rússia, para dragar um porto. Nessa negociação, o presidente da Argentina, Raul Alfonsim, renunciou, e fui contratada pelo governo russo como advogada. Então trabalhei durante muitos anos para o governo russo como advogada para negociar contratos de obras públicas em diferentes países. Nessa época eu era má, era uma mulher má que fazia sofrer muito a outra parte nas negociações, e por isso fui contratada pelo governo russo… Se fosse uma miúda boa não me tinham contratado.

Affectum – Nessa altura eras uma guerreira, bélica, é isso que queres dizer?

Guerreira sanguinária, era tremenda! E quando conheci Grof comecei a trabalhar-me muito e quando terminei a formação com ele em 1999, de facto, sentia-me outra pessoa. Aí comecei a estudar com Bert Hellinger que começava a ensinar pelo mundo hispânico, pois na Alemanha já era conhecido, e publicava o seu primeiro livro, A Simetria Oculta do Amor. Fiquei fascinada e em choque com as suas compreensões, porque por momentos sentia que estava em oposição ao direito, e para mim isso era um conflito; outro conflito surgiu quando o conheci pessoalmente em 2003. Eu já fazia um trabalho em que me dava conta da existência de uma ponte entre o direito e a filosofia de Bert Hellinger. Percebi isso imediatamente. O que não sabia era como o implementar e por em prática. Recordo-me que quando nos conhecemos eu disse-lhe que estava encantada com a sua filosofia, mas que, no entanto, tinha um problema, porque teríamos que chegar a um acordo. Ele ficou muito surpreendido por eu ser tão frontal, e perguntou-me porque precisávamos de negociar, e eu disse-lhe que ele era contra a adoção e eu tinha dois filhos adotados que não pensava devolver. Ele disse que iria pensar o que iriam fazer, e em 2005, dois anos depois, disse-me que se os filhos não têm uma família que se ocupe deles no lugar dos seus pais, estava de acordo que pessoas de fora do sistema os adotassem, assim que agora podia continuar a estudar tranquila porque estávamos os dois alinhados. Nessa altura, na Argentina, não havia uma formação estruturada para estudar constelações, tínhamos só esse livro e um formador que se limitava a seguir e repetir os movimentos do Hellinger, sem qualquer explicação relativa aos movimentos ou frases que se usavam. Entretanto Bert Hellinger começa a fazer-se mais presente na América Latina e eu comecei a ir a todos os lugares onde ele dava seminários, que eram formações intensivas de cinco dias. Em 2007 anuncia, já casado com a Sophie Hellinger, a Hellinger Ciência, e a partir daí comecei a viajar à Alemanha e ao México, onde abriu a Hellinger Ciência, em 2008. Em 2015, quando já estava certificada pelo Hellinger depois de todas as formações que ao longo dos anos fiz com ele, convidou-me para ser professora dentro da Hellinger Ciência. No total, somos oito professores seus discípulos, eu sou a última. Enquanto o Hellinger foi vivo trabalhei na Universidade Innovare do Brasil organizando o programa e dando formação aos juízes e advogados em direito sistémico. Quando em 2001 comecei com este processo pessoal e percebi que a psicologia e o direito se podiam relacionar, designei-o de Filosofia Jurídico-Sistémica.

Affectum – Como foi trabalhar com Bert Hellinger?

Este trabalho de Hellinger é muito profundo no sentido de que se trata de uma metodologia específica para cada situação e implica que cada um se trabalhe primeiro para poder trabalhar o outro. Há frases específicas para cada situação e há um trabalho pessoal de facilitador de constelações que não se pode evitar. O trabalho pessoal é o primeiro que temos que fazer, e seguir a vida toda, aprofundando e aperfeiçoando. Digo aos meus alunos que não somos facilitadores de consteções nas sessões ou eventos, mas sim 24 horas por dia o tempo todo! Inclusivamente, uma vez Bert Hellinger perguntou-me como é que eu reconhecia um bom facilitador. Respondi-lhe que primeiro olhamos a pessoa, como está, e depois olhamos a sua família, o seu companheiro, que tipo de pessoa é, depois olhamos os seus filhos, se tem amigos, como é o seu trabalho, e com base nisso percebemos se a pessoa aplica ou não esta filosofia na sua vida. Só assim estará habilitado a facilitar constelações.

Affectum – E a ligação das constelações com o direito aconteceu ainda com Bert Hellinger?

Sim, tudo começou com ele! Em 2015 quando fui ao Brasil com Hellinger ele aprovou o meu programa de estudos, tendo dado nessa altura formação a 400 juízes, fiscais e advogados, incluindo Sami Storch. Desde então trabalhei sempre com ele até à sua morte, e em janeiro de 2021 saí da Hellinger Ciência.

Paralelamente, em 2018 fui designada pela Ordem dos Advogados de Morón, na Argentina, Diretora do Instituto de Direito Sistémico, e aí começamos a fazer jornadas nacionais e internacionais sobre o tema e uma infinidade de cursos, e assim chegou o direito sistémico a toda a Argentina. Além disso, tenho cinco centros que criei a partir de 2007; um no Chile, Paraguai, Estados Unidos, no Brasil e no México.

Affectum – Cristina, na América Latina, Espanha e alguns países da Europa este movimento está mais adiantado, mas em Portugal ainda damos os primeiros passos. Quando falas de tudo isso, dessas comissões em que trabalhas com advogados e juízes há já tantos anos, a pergunta que me surge é como se chega a esse lugar em que o direito sistémico reflete quase que oficialmente uma nova forma de trabalhar o conflito?

A questão é que eu desenvolvi sempre este olhar sistémico, não só com Hellinger, mas também com outros autores, a que chamo, desde janeiro de 2021, resolução sistémica de conflitos ao trabalho que faço.

Affectum – É algo que fazes há já muitos anos em vários países?

Sim, há muitos anos, desde 2001. Há um livro da diretora do Instituto de Bert Hellinger da Colômbia de 2005, Marianela Vallejo Valencia, que já mencionava o meu trabalho. No Chile, por exemplo, trabalhei com juízes nos tribunais em processos difíceis, e chamavam-me como consultora, mas estão longe de aceitar transversalmente o sistémico. Isto explica-se porque nas suas universidades de psicologia, assim como na Argentina, estudam Freud, e entendem como muito duvidoso Carl Jung; ou seja, a psicologia transpessoal não existe para eles. Há uma matéria no curso de psicologia que se chama Novas Correntes, e aí estudam todo o transpessoal, de Stanislav Grof a Ken Wilber, Gestalt, Bioenergética e constelações. Pelo que mal podem entender o que estamos a olhar sistemicamente ao tentar resolver os conflitos. Mas acontece que publiquei já seis livros sobre este assunto, que foi como pólvora. No livro “Divórcios Amistosos” incorporei o conceito de triângulo dramático, e antes deste escrevi um livro que se chama “Em que caixa vives” que é um livro para resolver conflitos. Este livro trata do trabalho pessoal que um juíz, um advogado ou um terapeuta tem que fazer antes de acompanhar outra pessoa a resolver um conflito, pois sem trabalhar os seus pontos cegos não poderão ser eficientes nos processos que acompanham.

Affectum – Referes-te às Ordens da Ajuda?

Uma das coisas que falávamos com Hellinger é que as Ordens da Ajuda estão mal denominadas, porque deveriam ser as Ordens do Acompanhamento, porque não podemos ajudar ninguém. Acompanhar sim, podemos. Ajudar não, só se ajuda a pessoa a si mesma.

Affectum – Também trabalhas com mediação?

Sim, em paralelo com Stanislav Grof estudei mediação também, pelo que há muitas ferramentas sistémicas da mediação que uso no meu trabalho com o Direito Sistémico. Por exemplo, as perguntas circulares, a pergunta do milagre, entre outras. Num congresso recente no Rio de Janeiro colocou-se a questão se existe neutralidade na mediação, e eu disse que não. É impossível ser neutral porque somos leais aos nossos sistemas e, portanto, não seremos neutrais nunca. O que podemos é ter um controle sobre como interagimos com as partes numa mediação.

Affectum – Fala-nos do pensamento sistémico, Cristina

Aprender a pensar sistemicamente é algo que adoro ensinar aos advogados. Como trabalho com bonecos de madeira, peço às pessoas que me mostrem o conflito, e aí dou-me conta que a pessoa forma parte do conflito. Se há algo que as pessoas não gostam é que lhes digam que fazem parte do conflito; as pessoas gostam que lhe digamos mentiras no sentido de que “ele é o mau, eu sou a boa”. Mas quando vêm que fazem parte do conflito, começam a agir de forma diferente.

Affectum – Começam a assumir a sua responsabilidade?

Não só assumir a responsabilidade, como também as consequências dos seus atos. No Chile, por ex., na Argentina, no Paraguai, no México, as pessoas são reativas. O que quer dizer? Que reagem quando “a água lhes tapa o nariz”. Ao contrário, o Brasil é proativo. Aqui, eu dou uma conferência por zoom e no dia seguinte já escrevem um livro com o que eu digo. Há alguns juízes na Argentina que começaram a estudar constelações e trabalham os seus processos com estes critérios, chamando-me às suas audiências como consultora para fazer movimentos sistémicos. Aí quando as partes chegavam a acordo, e os advogados diziam que juntariam numa semana o acordo aos autos, eu dizia que não, que de imediato se faria a ata e terminariam o processo ali, sendo que nunca mais veriam os seus clientes. Então, os clientes e advogados ficaram muito agradecidos, pois já há dez anos que estavam a litigar por alimentos e visitas dos menores, e recordo-me que foi um movimento de cinco minutos que pode resolver o problema.

Em fevereiro e março de 2023 estive no México a trabalhar, e fiz um seminário de três dias no Clube de Banqueiros em que vieram muitas pessoas que pertencem à administração pública, procuradores, pessoas que pertencem à Comissão dos Direitos Humanos, e dei uma introdução ao Direito Sistémico, de onde surgiu um convénio com a Universidade de Zacatecas , onde comecei a lecionar a disciplina Direito Sistémico, Resolução Sistémica de Conflitos, com uma certificação universitária a nível internacional. Há poucos alunos por ser a primeira vez, mas estou segura de que virão muitos mais. Entretanto, aconteceu algo muito interessante: dois dos meus livros, “Constelar para curar” e “Em que caixa vives” foram traduzidos em braille, e aí a Comissão dos Direitos Humanos do México convidou-me a dar uma formação para cegos, e não podes imaginar o que foi trabalhar com eles, porque nós, que estamos habituados a trabalhar a dizer, olha aqui, o que vês ali, etc…, de repente tive que mudar toda a minha linguagem e começar a falar de forma cinestésica para me entender com todos que estavam na sala. Partilhamos um almoço, choramos todos de emoção pelos temas que surgiram, e fiquei dois dias sem conseguir falar com ninguém o que ali vivi, pois fiquei em estado de choque. Em dezembro do ano passado voltei ao México para trabalhar para a Comissão dos Direitos Humanos e fizemos um documentário sobre isto.

Affectum – Que tipo de documentário, Cristina?

Um documentário sobre este trabalho, pois é a primeira vez que se edita um livro em braille sobre constelações e sobre a possibilidade de os cegos poderem constelar. É um projeto que me encanta, um projeto gratuito, suportado por muitos que fazem um esforço para que eu possa chegar lá e participar. Como disse um dos cegos, “eu estava com as janelas fechadas, e depois da constelação ficaram abertas de par em par”, e isto foi precioso, precioso, foi o melhor piropo que me puderam dar desde que nasci.

Na Argentina fazemos as jornadas de Direito Sistémico e tudo se está a movimentar mais; penso que com a minha idade, por ser mais velha, as pessoas ouvem-me mais e vão passando a mensagem de boca a boca. Foram vinte anos de trabalho solitário, e agora estão a ver-se mais os resultados.

Affectum – Emociona-nos muito ver esse movimento de expansão tão grande, e sonhamos que um dia em Portugal isso aconteça também, Cristina

CL- Vai acontecer seguramente porque isto já não se detém!

Affectum – Gostaríamos de falar de um tema que nos surge muito nos últimos anos, e já o referiste no início, a propósito de Hellinger, que teve a humildade de mudar de opinião durante a sua vida sobre temas importantes, como a adoção. Como mãe adotiva, fala-nos do teu entendimento sistémico sobre a adoção.

Na minha família, na família da minha mãe, a minha avó tinha três anos quando perdeu a mãe no parto do seu irmão, tendo o seu pai ficado viúvo com um recém-nascido e ela bem pequenina. E o meu avô também havia perdido a sua mãe no parto. Para mim é muito importante dar-me conta do que passa porque o meu avô e bisavô criaram um filho e uma filha sozinhos, não voltaram a casar. Eu casei-me, perdi um bebé no casamento, divorciei-me e depois adotei um menino e uma menina, ou seja, estou identificada com eles. Eu faço mosaicos como hobby e o meu professor disse-me há pouco tempo que todos os que fazem mosaicos tiveram antepassados construtores, e na verdade este avô e bisavô eram construtores, o que me deixou muito feliz pois, apesar de não ter conhecido este, através disto levo-o comigo. O irmão da minha avó, o que ficou órfão ao nascer, quando se casou teve três filhas e adotou sete meninos mais. Estas adoções foram simples, o que quer dizer que os filhos não perdem o contacto com os pais biológicos. Então, pelo natal, juntavam-se em casa do meu tio avô todos esses filhos com as suas famílias de origem e éramos quase cem pessoas, e eu tenho uma recordação muito bonita desses tempos. Quando me divorciei decidi que nunca mais voltaria a casar; passaram sete anos até que numa viagem a Hiroshima se aproximou de mim um miúdo a pedir que o levantasse no colo, e quando o fiz foi como uma flecha no meu coração, e disse para mim: não posso estar nem mais um dia sem ter um filho! Quando regressei à Argentina iniciei os trâmites para a adoção dos meus filhos. Quando eles eram pequenos olhava para eles e pensava com tristeza que os tinham abandonado, mas quando comecei a estudar constelações deixei de os olhar com pena, pois éramos todos, na verdade, afortunados. Comecei também a agradecer internamente aos seus pais os terem tido. Deixar de julgar os seus pais biológicos foi o passo mais difícil que tive que dar, deixar de julgar e agradecer porque eu podia acompanhar as crianças a crescer. O meu filho passou por uma crise muito grande aos sete anos a imaginar que os seus pais biológicos o viessem buscar, e o meu medo era que ele quisesse ir. Prometi-lhe, como advogada, que se ele não quisesse ir não permitiria que o levassem a nenhum lugar, e isto fez uma grande mudança nas nossas vidas, foi a confiança de saber que um contava com o outro. Há uma identificação tão grande entre nós que as pessoas duvidam que são adotados. Há uma comunicação não verbal, uma linguagem corporal que nos une muito.

Affectum – Sentes que foste escolhida?

Sim, estou convencida que sim e que assim tinha que ser. Penso que o destino nos pôs no caminho aos três. A questão na adoção começa nos pais adotivos: uma família para uma criança e não uma criança para uma família!

Affectum – E quando há uma integração e um respeito pela família de origem também, não é?

Sim, se não há respeito pela família de origem a adoção não funciona, não flui.

Affectum – Além de advogada e facilitadora de constelações és também hipnoterapeuta. Como integras tudo isto na tua vida?

Sim, estudei hipnose ericksoniana, e ajudou-me muito, inclusivamente com os meus filhos. Todas as ferramentas que podemos aprender são bem-vindas. Também estudei xamanismo, e juntamente com o conhecimento das constelações podemos obter resultados fantásticos. Penso que vos passará o mesmo, mas sinto-me tão feliz com este trabalho que não o consigo explicar. Um dia tocou-me um trabalho muito difícil no México: convidaram-me a trabalhar com a polícia federal, que é quem se ocupa dos grandes casos do tráfico de droga, e um dos polícias que integrava a equipa perdeu dois filhos, cujos corpos depois de assassinados foram enviados para a esquadra dentro de sacos plásticos. Eu assisti e acompanhei este pai nesse momento, e acredito que a formação que lhes dei nessa altura foi muito importante para todos, especialmente para ele. Depois voltei lá mais vezes, e sempre que me vinha embora deixava polícias muito mais sorridentes e amorosos do que os que encontrava quando lá chegava. Voltarei sempre lá, pois são pessoas muito sofridas e que sentem que não são vistas nem reconhecidas no seu trabalho, pois vão contra a povoação e têm que ser agressivos. Então há aqui muito trabalho por fazer e, apesar de ser um dos lugares do mundo mais perigosos, por algum motivo a vida me levou lá.

Affectum – Mudando de tema, gostaríamos que nos falasses sobre divórcios e sobre o teu livro “Divórcios Amistosos”

O tema com divórcios amigáveis vem desde há já muito tempo, e a ideia de escrever este livro tem a ver com todo o trabalho que faço antes do divórcio. Quando alguém me procura para se divorciar, tento sempre que solucionem a crise do casal, que olhem o outro sob outro ângulo, que se comecem a olhar e aceitar, que conversem mais, e que, não havendo remédio, nesse caso se divorciarão. A ideia é que as pessoas explorem nesse momento o que nunca falaram, porque o que acontece é que casam e nunca falam sobre temas importantes, como, por exemplo, a forma como vão gerir o dinheiro, quantos filhos vão ter, onde vão viver; as pessoas casam-se às cegas. Assim, trato de fazer exercícios com eles, como escreverem numa folha o que têm a oferecer ao outro e noutra o que pretendem receber. Com isto percebem que não têm a menor ideia do que é um casal, e que sobreviveram como casal mas que, na realidade, de casal não têm nada. São uma mãe com um filho, ou um pai com uma filha, mas não são um par. Curiosamente, os homens colocam em primeiro lugar o sexo, isso é o que oferecem, e as mulheres exigem em primeiro lugar fidelidade, sem que nunca tivessem acordado que iria existir. Acontece que a mulher dá por assente a fidelidade, mas trata-se de um acordo de partes que tem a ver com o amor incondicional. Mas na linha intergeracional não existe o amor incondicional, tem que ser algo acordado expressamente entre os dois. Quando têm as listas completas proponho que as partilhem entre eles num lindo restaurante para não se zangarem em casa. A ideia é perceberem o que poderão negociar e o que não é negociável. Aí proponho que cheguem a um acordo que vai durar dois anos, assinando-o. Uma coisa que as mulheres não colocam é tempo livre, tempo para elas; eles sim, põem jogar futebol com amigos. Elas não se permitem tempo para elas, não exigindo que se respeite o seu tempo, e eles não se permitem chorar, e aqui começam os conflitos. Depois ainda há o tema de que os homens não ajudam nas tarefas de casa, e a questão é que eles não têm que ajudar; eles vivem em casa, por isso as tarefas são deles também. Quando uma mulher diz que o marido não ajuda em casa, efetivamente está a falar de um filho, não de um marido. Outra coisa que faz a mulher, pelo menos no Chile, Argentina e México, é comprar a roupa interior do marido, e as camisas, etc, tudo o que faz uma mãe por um filho, não uma mulher pelo marido. A responsabilidade é nossa, do feminino, pois vimos de sistemas em que nos compete fazer tudo e cuidar de todos.

Affectum – Conta-nos um caso curioso que tenhas tido

Um dos casos mais interessantes que tive foi um senhor que veio a um grupo de constelações e foi escolhido para representar o marido da pessoa que estava a apresentar o tema. Essa pessoa estava a divorciar-se e a tentar beneficiar-se na partilha. O incrível é que esse senhor tinha o nome do marido da mulher que constelava, e essa mulher tinha o mesmo nome da ex-mulher dele, a quem ele também tinha escondido bens no seu processo de divórcio. O que aconteceu é que nunca mais os tivemos nos grupos de constelações, desapareceram ambos. Mas pelo menos o universo tocou-os com uma varinha mágica para que percebessem que não se pode fugir, sempre nos vai mostrar tudo o que temos que trabalhar.

Affectum – Cristina, quando alguém te procura para um divórcio, em que papel te sentes mais, como advogada ou como terapeuta? Porque às vezes parece ser muito ténue a fronteira entre uma coisa e outra

No princípio, quando comecei a facilitar constelações, não sabia se era uma advogada que sabia de psicologia ou uma psicóloga que sabia de direito, e aí dei-me conta que a questão não é ser advogada ou terapeuta. Porque sou advogada e terapeuta. Portanto, as minhas intervenções podem causar surpresa para as partes porque não estão habituadas a uma advogada como sou eu. Já há muitos anos que não vou a tribunal, os meus casos resolvem-se muito antes. Quando fazemos a pergunta do milagre ao cliente, o que teria que acontecer para que tudo ficasse bem?, a pessoa encontra os seus recursos sozinha. Agora imaginem, numa intervenção sistémica procuram-me uns pais porque o filho se porta mal, na escola e em casa, desobedece sempre. Eu olho aqueles pais e percebo que são agrestes, um pouco rudes, e que teremos que trabalhar muito. Então digo-lhes que irei estudar o caso, e peço-lhes para voltarem numa semana, e que até lá não deverão fazer nada diferente do que têm feito até então. Eles vão embora, voltam dali a uma semana e o filho porta-se bem. O que passou? São dois oposicionistas, e se lhes dou uma tarefa não a vão fazer; assim, o que tenho que dizer-lhes é que não façam nada, e vão começar a fazer coisas para que haja alterações. Agora, porque reconheço que são oposicionistas? Porque eu também o sou, com a diferença de eu ter trabalhado muito essa característica de forma a poder dominar e tomar consciência. Quando eles vêm e lhes digo para não fazerem absolutamente nada diferente, estou certa que vão fazer tudo diferente. E o miúdo mostra isso através do seu comportamento. Assim que, quanto mais nós estudamos, melhor saberemos que ferramentas usar em cada momento.

Affectum – Isso é uma resolução sistémica de conflitos, Cristina

Claro! O que faço é trazer de cada disciplina o que me serve para este trabalho, e ensiná-lo. Porque não é necessário ser psicólogo para fazer isto.

Affectum – Como vês o conflito hoje numa sociedade que parece ser cada vez mais conflituosa?

Creio que conflitos debaixo do céu sempre houve e haverá, e parece-me ser uma bendição porque o conflito faz com que as pessoas cresçam muito.

Affectum – São uma oportunidade?

Sim, já Platão falava assim do conflito e Aristóteles também. Há desde sempre um movimento em todo o mundo em que as pessoas se confrontam constantemente. E outro tema atual é o da comunicação, porque estamos sempre ligados, já não há barreiras nem distância. Fez-se recentemente um estudo para ver o coeficiente intelectual no desenvolvimento das pessoas, e percebeu-se que os miúdos de sete anos têm um coeficiente menor do que a geração anterior, o que está relacionado com o uso dos telefones e gadgets que os coloca passivamente a receber informação, sem haver qualquer esforço de pesquisa ou investigação. Estamos a viver um retrocesso no desenvolvimento cognitivo. Há um livro, “A infância interrompida”, que fala muito bem disto, e tem um teste com uma lista de coisas que vivemos na infância para assinalar. Por exemplo, se uma criança cresce a ver os pais a discutir, não vai conseguir aprender na escola, por mais que depois esteja num ambiente sem discussões. O mesmo se faltou alimento, o dano é tão grande que, por mais que coma depois, não poderá recuperar. Por isso teremos que prestar muita atenção a tudo o que fazemos com estas pessoas que estão feridas. Outro livro meu chama-se “O dano invisível” e tem a ver com os microtraumas e com essas frases e palavras que dizem os pais uma e outra vez ao filho, e o filho acredita nelas porque acredita nos pais, e pensa que se é tonto, se não serve para o desporto, se nunca vai conseguir fazer nada, vai crescer a acreditar em tudo isso. Eu digo aos meus alunos que todas essas vozes que ouvem, porque todos ouvimos, “não são vocês, vocês são os que as ouvem, não quem as diz! Essas vozes ouviram na barriga da mãe e cresceram a ouvi-las no cérebro, mas não são vossas.” Por isso o trabalho com constelações é longo, vai da ignorância total dos seus pontos cegos a se reconhecer como um indivíduo separado dos pais, amoroso, com gratidão em relação a eles. Isto é um feito glorioso!

Affectum – Na América Latina esta atividade está regulada, Cristina?

Não está regulada ainda, mas à semelhança do Brasil, pela Constituição, todos os juízes têm a obrigação de adotar todos os métodos alternativos na resolução de conflitos. Mas a grande questão é que isto não se trata de uma terapia. Isto é uma filosofia de vida, e a filosofia é a mãe de todas as ciências.

Affectum – É uma atitude, uma forma de estar na vida?

Sim, assim é!

Affectum – Quais os projetos que desenvolves atualmente na resolução sistémica de conflitos?

Fiz uma parceria com uma advogada e facilitadora de constelações do Brasil, Ana Galutti, que se formou como professora no Centro Reconciliar e colaborou com outros professores no livro “Divórcios amigáveis”. Ela organiza workshops e sessões individuais no Brasil e a nossa parceria está a crescer muito. Trabalhamos com empresas no Brasil e também damos cursos e workshops aos nossos colegas. Tenho participado com trabalhos em congressos e eventos de várias Ordens de Advogados do Brasil, em diferentes estados.

Na Argentina, a Câmara dos Deputados da Província de La Rioja reconheceu por unanimidade, pela segunda vez, o meu trabalho e declarou de interesse o Seminário sobre Resolução de Conflitos que coordenei na Universidade Nacional de La Rioja.

Ministrei um Seminário de RSE organizado pelo Conselho Departamental e pelo Colégio de Magistrados e Funcionários Públicos de Mercedes, província de Buenos Aires.

Na Ordem dos Advogados de Morón, realizaram-se as conferências anuais do Instituto que coordeno e, para além da formação contínua e dos workshops, publiquei O Dano Invisível, das Constelações Familiares às Configurações Sistémicas.

Com a Universidade Viktor Frankl de Zacatecas realizámos a segunda formação de Facilitadores em Resolução Sistémica de Conflitos.

Este ano fui pela segunda vez a Espanha com o meu trabalho, da outra vez foi em Barcelona e no País Basco e agora em Granada.

Todos os meus livros foram traduzidos para português graças à iniciativa da Dra. Ana Galutti e estarão à venda no final deste ano.

Affectum – Para terminar, peço-te uma mensagem para os advogados que começam a sua carreira e para os que se sentem frustrados depois de muitos anos de profissão. Na verdade, com esta abordagem, todos eles têm uma grande possibilidade de trabalhar o conflito de uma forma diferente

Todos os advogados e juízes que me chegam querem voltar a encantar-se com a profissão, encontrar a paixão novamente. A paixão está relacionada com os pais de uma pessoa; se perdeu a paixão pelo trabalho quer dizer que se desconectou da fonte, dos seus pais. Portanto, nesse sentido, é necessário que olhem amorosamente para trás e que os vejam, e com gratidão, os tomem no seu coração tal como são. A partir daí, a pessoa voltará a encantar-se com ela mesma, com a sua vida, com o trabalho e profissão, vai desfrutar a natureza, vai querer conhecer o mundo. Tudo começa com os pais. É assim, não há outra forma de ir para a vida que não seja com os pais, com o agradecimento pelo tanto que deles recebemos. A vida!