Há pessoas que parecem mover-se entre mundos, unindo a razão à intuição, o visível ao sagrado. Ana Taboada é uma delas. Formada em Ciências, iniciou o seu percurso profissional no mundo académico da investigação, mas foi através de uma profunda escuta interior que descobriu a sua verdadeira vocação como guardiã de saberes ancestrais e facilitadora de processos de cura e reconexão.

Hoje, a Ana dedica-se à criação de espaços de transformação, físicos e simbólicos, onde o feminino, o corpo e a espiritualidade se reencontram. No seu Templo de Artes Alquímicas conduz cerimónias, rituais e percursos de autoconhecimento que unem a astrologia Maya, a medicina ancestral, o xamanismo e a alquimia interior. Na Escola de Mistérios convida quem aí chega a atravessar as suas próprias sombras, a renascer no amor e recordar o poder que habita na memória da alma.

Nesta conversa íntima, mergulhamos na história de uma mulher que escolheu caminhar entre a ciência e o mistério, transformando a sua própria jornada numa ponte para o despertar de tantos outros.

AFFECTUM – Ana, o teu percurso é vasto e profundamente enraizado nas tradições ancestrais. O que te levou a deixar uma carreira científica e a mergulhar neste caminho de alquimia interna e espiritualidade feminina?

ANA – O meu caminho começou muito antes de eu deixar a ciência. Começou aos 16 anos, quando uma escoliose me obrigou a olhar para o corpo — não como um objeto biológico, mas como uma porta. Foi o corpo que me levou ao yoga, à meditação, às tradições antigas. Sempre senti que ali havia uma casa que a ciência, apesar de me fascinar, não conseguia dar-me.

Segui um caminho académico durante anos, trabalhei em investigação, vivi a beleza da pergunta científica — mas também a rigidez, a hierarquia, a distância do corpo. E houve um momento em que percebi que, por mais que admirasse a ciência, não havia ali chão para mim.

O que me fez atravessar a ponte não foi uma revelação mística. Foi muito simples: o corpo começou a pedir-me verdade interna. Quando ensinava yoga sentia-me inteira. Quando estava no laboratório sentia-me dividida. E essa divisão tornou-se grande demais para ser ignorada.

Deixei a ciência porque o corpo falou mais alto. E escolhi o caminho da espiritualidade feminina porque aí pude voltar a respirar — não pela mente, mas pelo corpo, pela raiz.

AFFECTUM – Ana, olhando para trás, consegues identificar o momento da tua vida em que percebeste que o caminho científico não bastava para responder ao que te movia por dentro?

ANA – Houve dois grandes momentos. O primeiro, aos 29 anos, quando deixei definitivamente a carreira de investigação. Ali percebi que o conhecimento que eu procurava não estava fora de mim — estava na relação entre o corpo, a consciência e a vida diária. A ciência explicava muito, mas não me tocava onde realmente doía e onde realmente curava. O segundo momento veio em 2022, quando tive uma crise de saúde que me fez regressar à ciência pela porta da nutrição e saúde especializada em mulheres. Estudei de novo, investiguei de novo, agarrei-me à racionalidade como quem tenta encontrar chão. Mas o corpo mostrou-me algo ainda mais profundo: que a ciência, sem corpo, perde o seu espírito.

Hoje vejo a ciência como a via que os antigos conheciam: uma arte de observar, escutar e relacionar-se com o real.

Não como uma fonte de verdades absolutas, mas como uma linguagem para dialogar com a vida.

O ponto de viragem foi este: perceber que a ciência me dava ferramentas, mas só o corpo me dava direção e propósito.

AFFECTUM – Que ferida, busca ou revelação pessoal te levou a abrir espaço para a espiritualidade e fazer dela o centro da tua vida e do teu trabalho?

ANA – A ferida foi a mesma que atravessa a maior parte de nós: a separação entre corpo e espírito.

Confesso que a espiritualidade que vivi durante muitos anos foi importante, mas ainda assim era ascensional… e pode parecer estranho o que vou dizer, mas mesmo quando já estava no caminho do yoga, vivi uma espiritualidade demasiado aérea, demasiado longe da raiz, demasiado longe de mim. O corpo ainda era o obstáculo, mesmo quando se diz de forma muito eloquente que este é o templo.

O que me levou a abrir mais espaço para a espiritualidade foi exatamente perceber onde ela falhava: quando se desencaixa do corpo. Quando tenta iluminar em vez de encarnar. Quando promete transcendência mas esquece a terra. Quando usa o corpo como fuga. Quando recorre à mente para controlar o corpo e as emoções. Quando nega a sombra, a escuridão e a morte como as grandes mestres.

A revelação começou a vir gradualmente quando passei a entender que:

O corpo é o templo do espírito. Não um instrumento sofisticado para transcendência.

E que a espiritualidade, sem corpo, é só fuga.

Foi isso que me trouxe para a espiritualidade matricial — não como crença, não como sistema, mas como um modo de escuta. Hoje, tudo na minha vida nasce desse lugar onde o corpo fala, a alma responde, e a consciência volta a encontrar chão. Só assim posso me tornar um canal coerente entre a Terra e o Cosmos.

A espiritualidade tornou-se o centro da minha vida não por ser “elevada”, mas porque é profundamente encarnada.

É a arte de estar inteira — aqui, agora, no corpo que vive, sente, respira e recorda.

AFFECTUM – Como foi essa travessia, sair de um mundo de certezas e entrar num território onde o sentir, o invisível e o ancestral ganham voz e orientam o caminho?

ANA – Foi uma travessia longa, feita mais de quedas do que de certezas. Não foi um salto espiritual iluminado — foi um caminhar no escuro, muitas vezes às cegas, a aprender a confiar num caminho que ninguém podia validar por mim. E quanto maior o salto na transcendência, maior a queda na escuridão. Porque eu não vim transcender, eu vim aprender a trilhar o caminho sagrado do espírito encarnado.

O mundo das certezas dava-me uma sensação de segurança, mas não me dava vida.

O mundo do sentir, do invisível e do ancestral trouxe-me exatamente o contrário: movimento, risco, contraste, dores antigas, espelhos profundos — e um eixo que só se revela quando tudo o resto falha.

Aprendi a caminhar assim: caindo nos padrões, levantando-me, falhando, ajustando, e reconhecendo que o meu caminho só pode ser o meu.

A travessia não foi fácil, mas foi radicalmente verdadeira.

Foi ela que me ensinou a confiar sem ver, a escutar antes de saber, a permanecer mesmo quando tudo vibra em oposto.

E é essa fidelidade ao meu eixo que hoje orienta o meu passo — e não qualquer certeza externa.

AFFECTUM – Quando pensas nas mulheres da tua linhagem, o que nelas reconheces em ti, e o que sentes que vieste curar ou transformar?

ANA – O meu corpo sempre trouxe as vozes da minha linhagem — não apenas os dons, mas também as dores e as fraquezas. Eu reconheço em mim as mulheres que amaram até se perderem. As que confundiram amor com fusão. As que carregaram mais do que lhes cabia. As que controlaram para não sentir. As que salvaram para não ruírem. As que sentiam vergonha só por existirem. As que viam e intuíam sem conexão com o ventre. As que sabiam abrir portais, mas não os sabiam selar. As que canalizavam sem raiz. As que se refugiavam na razão por não confiarem no corpo.

Durante anos, vivi essas vozes no corpo — na digestão, no esqueleto, nas escolhas, nas relações.

E foi o próprio corpo que me revelou que eu não vinha repetir estas histórias: eu vinha escutá-las, honrá-las, integrá-las, para poder libertar-me delas.

O que vim transformar foi isto: a ilusão de que amar é abandonar-me, a ideia de que cuidar é carregar o que não é meu, a crença de que ser mulher é quebrar-se para que os outros permaneçam, a alucinação que ser espiritual é fragmentar-me.

A ferida veio pela linhagem.

A cura vem pelo corpo.

E a liberdade vem pelo eixo.

AFFECTUM – O que significa para ti viver num “templo interno”? Foi algo que construíste ao longo do tempo, ou sempre o sentiste presente, ainda que em silêncio?

ANA – O templo interno sempre esteve presente — mas por muitos anos esteve em silêncio. Eu vivi muitos contrastes na minha vida: momentos de grande lucidez e momentos de completa perda de mim. E foi esse contraste que me ensinou que o templo não é um lugar idealizado dentro de nós: é o próprio corpo.

O templo interno na vida encarnada é esta casa que me acompanha desde que nasci — o corpo que sente, que lembra, que guarda, que transforma. O maior presente da Terra e que a Ela regressará quando eu morrer e o espírito voar.

E foi quando reconheci que o corpo é o templo do espírito que comecei, finalmente, a sentir-me em casa.

Hoje, viver no templo interno significa isto para mim: estar ancorada na terra, respirar desde a raiz, confiar no corpo como bússola.

Mesmo em momentos turbulentos, se permaneço no templo, não me perco, porque estou no meu eixo por onde a minha luz circula e o meu espírito ilumina.

Posso atravessar tudo — mas não deixo de regressar a mim.

AFFECTUM – A tua obra é profundamente ligada ao feminino, à terra e à memória ancestral. Quanto de consciente há nessa decisão, ou será que se trata de um verdadeiro chamado?

ANA – Durante grande parte da minha vida foi apenas chamado. Um chamado persistente, silencioso, que me acompanhava desde sempre: o feminino, a terra, a linhagem, os rituais, a memória antiga. Eu seguia esse chamado sem saber explicar. Era instintivo, corporal, inevitável. Só nos últimos anos é que se tornou consciente. Consciente no sentido de reconhecer que não é um interesse — é um eixo. Não é uma escolha — é uma direção da alma. Não é uma estética — é uma função para estes tempos.

Hoje sei que estou aqui para escutar a terra através do corpo, e escutar o corpo através da terra.

É daí que nasce o meu trabalho: não como uma disciplina, mas como uma relação.

A consciência veio depois.

O chamado veio primeiro.

E ambos vivem no mesmo lugar: no corpo que se tornou canal matricial para a terra e para a memória ancestral.

AFFECTUM – Que desafios ou resistências internas e externas tiveste de atravessar para honrar este caminho e manifestar o que hoje partilhas com o mundo?

ANA – Foram muitos os desafios — internos, externos, visíveis e invisíveis. Mas, olhando hoje, percebo que todos serviram o mesmo propósito: trazer-me de volta ao meu eixo.

O maior desafio foi aprender a confiar na verdade que habita no meu corpo. A resistir à tentação de me agarrar a verdades absolutas, a certezas fáceis, a referências externas que pareciam seguras mas não tinham raiz. Sempre que segui o medo — o medo de não ser aceite, de não ser amada, de não ser reconhecida — perdi-me. Perdi-me quando deixei o corpo por último, quando quis agradar, quando quis caber em moldes que não eram meus.

Também me perdi quando validei mais a prova científica, os mestres ou as correntes espirituais, do que a sabedoria que já vivia dentro de mim. Hoje sei que o meu espírito fala através do corpo — e que o corpo, quando está ligado à Terra, realinha-me com o meu propósito, com as escolhas que são realmente minhas.

A resistência era sempre a mesma: não escutar o corpo.

E o desafio também era sempre o mesmo: regressar a ele.

AFFECTUM – O teu trabalho integra práticas como Astrologia Maya, Medicina Ancestral Feminina e Cerimónias de Cacau. Como é que estas tradições dialogam entre si?

ANA – Para mim, todas estas tradições são diferentes línguas da mesma fonte. São linguagens da Terra. Linguagens do corpo. Linguagens do ritmo natural.

A Astrologia Maya fala do tempo sagrado, do ritmo, da memória da alma.

A Medicina Ancestral Feminina fala do corpo, do ciclo, da raiz e do sangue que nos lembra onde pertencemos.

O Cacau e a Rosa falam da suavidade, da presença, da abertura do coração e do vínculo com o espírito.

O Sonho fala das mensagens das águas que habitam o mundo inconsciente, a sombra, o ventre.

Podem parecer caminhos distintos, mas no fundo conduzem ao mesmo lugar: a capacidade de relaxar na vida, no corpo, na Terra.

Porque quando o corpo relaxa, o espírito pode descer. Quando o corpo se torna casa, o invisível pode falar. Quando o ritmo abranda, a intuição alinha-se.

São mais que ferramentas. São pontes — todas elas levam ao mesmo templo: o corpo.

AFFECTUM – O que te ensinou o corpo, o teu próprio corpo, sobre cura, presença e amor, ao longo deste percurso?

ANA – O corpo ensinou-me que a cura não é um ato — é um movimento. E que esse movimento só acontece quando há espaço, presença e amor. O corpo ensinou-me que a medicina está dentro, não fora. Que os bloqueios e até o que chamamos doenças não são erros: são mensagens. Que nada se transforma pela força — transforma-se quando é visto, sentido e reconhecido sem tentativa de corrigir. O corpo ensinou-me que o amor que cura não é o amor que faz, resolve ou salva. É o amor que testemunha. O amor que respira. O amor que não pressiona nem exige — só abre espaço sem esforço. E ensinou-me que presença não é estar — é habitar. Habitar o corpo, habitar o eixo, habitar a respiração. Quando eu habito o corpo, a cura começa por si só.

AFFECTUM – Se pudesses falar à Ana de há vinte anos, o que lhe dirias sobre o mistério de viver em coerência com a alma?

ANA – Se eu pudesse falar com a Ana de 27 anos… não lhe diria a verdade inteira. Ela não a poderia carregar no corpo. E a verdade que um corpo não consegue encarnar transforma-se em peso. Eu apenas lhe diria isto: “Não estás sozinha. Continua. Confia no que ainda não consegues nomear. Um dia o teu corpo vai compreender — e tu vais compreender com ele.” Eu dir-lhe-ia que o caminho dela não é um caminho para perceber — é um caminho para habitar. E que viver em coerência com a alma não é uma conquista, nem um estado iluminado: é a coragem de regressar ao corpo, todas as vezes que a vida a puxar para longe. E no final, dir-lhe-ia apenas isto:

“O que procuras já vive em ti. O resto virá no tempo certo.”

AFFECTUM – Hoje, depois de tantas vidas dentro desta mesma vida, o que significa para ti “voltar a casa”?

ANA – Hoje, depois de tantas vidas dentro desta mesma vida, voltar a casa significa voltar ao corpo. Voltar ao lugar onde deixo de fugir de mim e posso finalmente descansar. Significa habitar-me sem medo, sem vigilância, sem a sensação de que algo em mim precisa de ser corrigido ou melhorado para ser digno de amor. Voltar a casa é relaxar o suficiente para que o espírito possa descer ao coração. A um coração que confia, a um coração encarnado. É permitir que a luz que há em mim encontre forma, direção e propósito — desde o corpo, não acima dele, não fora dele. E significa também não me culpar quando me perco. Porque me perder faz parte. Regressar faz parte. Respirar novamente faz parte.

Hoje sei que “casa” não é um estado perfeito: é um movimento. É um regresso. É um contínuo reencontro.

E esse reencontro acontece sempre que volto a sentir o chão, o ventre, a respiração — e reconheço: “Aqui. É aqui que eu vivo. Aqui estou segura.”

AFFECTUM – Como vês o papel da espiritualidade no mundo moderno, tão acelerado e racional?

ANA – Vejo a espiritualidade do nosso tempo como um espelho — um espelho da ferida da separação que carregamos há milénios. A espiritualidade moderna tornou-se, muitas vezes, uma fuga: transcendência, desmaterialização, técnicas para deixar o corpo quando é no corpo que a cura começa. É uma espiritualidade que, sem querer, reforça o mesmo padrão do mundo racional e acelerado: o afastamento do sentir, a dificuldade em estar, a necessidade de controlar.

Mas esse espelho é precioso. Porque nos mostra com clareza que estamos a atravessar um ponto de viragem planetária. O que se abre agora não é mais uma espiritualidade desligada da Terra, mas uma espiritualidade enraizada, matricial, encarnada. Uma espiritualidade em que a consciência não se separa do corpo — desce ao corpo.

Em que a luz não foge da sombra — ilumina desde dentro.

Em que o sagrado não está fora — respira em cada célula.

Em que o coração não é romantizado – pulsa no corpo.

Em que o amor não é fusão – flui desde o eixo.

O papel da espiritualidade hoje é este: relembrar-nos do corpo como templo e da Terra como mestra. Não para escaparmos do mundo moderno, mas para podermos habitá-lo com mais coerência, mais amor e mais presença.

AFFECTUM – Que mensagem deixarias a quem sente um certo vazio e não sabe como dar o primeiro passo no caminho do seu desenvolvimento humano?

ANA – Eu diria: Coloca as mãos no ventre. Respira para dentro. Respira para baixo. Respira como quem pousa. E seja o que for que surja — medo, confusão, vazio, lágrimas — respira com isso.

Nada está errado contigo. O vazio não é falha, é convite. É espaço que se está a abrir para algo novo te encontrar.

Não procures respostas na mente linear — o corpo não fala essa língua. O corpo fala através de sensações, símbolos, imagens, tal como nos sonhos. É uma linguagem feminina, matricial, da Terra.

Aprender a escutar o corpo é como aprender uma língua antiga. Ao início pode ser estranho, até desconfortável, mas com paciência nasce uma confiança que não depende de nada fora de ti.

O corpo não está contra o pensamento.

O corpo apenas deseja que o pensamento nasça de uma consciência mais funda — daquela sabedoria viva que pulsa no ventre, no sangue, no osso.

Então o primeiro passo é simples e profundo: respira e volta. E volta. E volta. Todas as vezes que forem precisas.

AFFECTUM – E para terminar, quais as palavras que nos ofereces para o início do novo ano que se aproxima?

ANA – Ofereço estas palavras como quem acende uma fogueira antes da travessia: Estamos a viver uma grande transição planetária. Não viemos salvar a Terra — viemos caminhar ao lado dela. Viemos aprender com ela o que significa ser humano, ser espírito em matéria, ser consciência com corpo.

O novo ano pede-nos isto: Que encontremos o nosso eixo. Que aprendamos a purificar as nossas emoções, não para as negar ou projectar, mas para as transformar em oferenda.

Que escutemos antes de agir e decidir.

Que sejamos silêncio antes da palavra.

Respiração antes da expressão.

Pede-nos que reconheçamos que a Terra não nos quer perfeitas — quer-nos presentes.

Quer-nos verticais.

Quer-nos verdadeiras.

A nova Terra não é um lugar: é um estado de ser.

E nasce sempre que há um corpo que se alinha, uma alma que desce, uma mulher que se lembra:

“Eu sou o entrelaçar da Terra e do Céu.

Eu sou o eixo.

Eu sou a casa onde a luz se acende.”

Então para este novo ano desejo-te:

Que te tornes Raiz para que o Céu te habite.