Quando o dinheiro destrói a confiança
“Não é o dinheiro que separa os casais, é o silêncio em torno dele.”
Esther Perel
Ana e Jerónimo são casados há 12 anos, chegaram à terapia de casal após uma crise que quase os levou à separação. Durante meses, Jerónimo ocultou um crédito pessoal que havia contraído sem conhecimento da Ana. O empréstimo, feito para cobrir investimentos em cripto-moedas, acumulava-se com outras dívidas de menor expressão. Ana descobriu tudo por acaso, ao receber uma chamada do banco sobre um pagamento em atraso. O choque foi gigante, pois, para além da questão financeira, a Ana sentiu-se traída. “Se ele é capaz de esconder isto, o que mais pode esconder?”, questionava-se. Jerónimo, por sua vez, dizia que escondeu por vergonha, pois “queria resolver tudo sozinho para não a preocupar.”
Eis um exemplo claro de infidelidade financeira, uma violação da confiança entre o casal e que, tal como a infidelidade sexual ou emocional, fere a base do vínculo relacional. Falamos de Infidelidade financeira quando referimos a ocultação ou manipulação de informações relacionadas a dinheiro dentro da relação conjugal, tal como esconder dívidas, manter contas secretas, fazer grandes compras sem consentimento ou conhecimento do outro, ou mentir sobre rendimentos. E assim como a traição sexual ou emocional, a financeira tem um impacto profundo na relação.
Este impacto acontece porque o dinheiro não é apenas dinheiro, é energia em movimento. E como tal, circula entre pessoas, famílias, empresas e instituições e Estados como um fluxo que revela as grandes leis da vida, a ordem, pertencimento e o equilíbrio.
Quando o dinheiro flui com clareza, quando damos, recebemos e reconhecemos o que é justo, fortalece relações, sustenta projetos e cria prosperidade. Quando o fluxo é bloqueado, por medo, culpa ou desordem, surgem conflitos, dívidas, escassez ou excessos.
Imaginem o dinheiro como um mensageiro que sinaliza onde a vida pede atenção. Um pagamento atrasado pode revelar uma relação desequilibrada, uma dificuldade em cobrar pode indicar falta de reconhecimento, um ganho inesperado pode ser uma abertura para novas possibilidades. No caso da Ana e do Jerónimo, a terapia revelou que o marido cresceu num lar onde expressar a fragilidade era sinónimo de fracasso. O pai, autoritário e rígido, punia qualquer sinal de erro financeiro com desprezo. Jerónimo interiorizou que “falar de problemas é perigoso”. Por outro lado, a Ana vinha de uma família em que tudo era conversado e resolvido em conjunto, com forte valorização da transparência. Assim, a infidelidade financeira neste casal não aconteceu por má-fé, mas sim como resultado de um padrão internalizado de negação e medo de desiludir. Por seu lado, na Ana, a sensação de traição foi amplificada pelas suas próprias experiências familiares de confiança partilhada.
A questão que se impõe é: O que neste sistema conjugal tornou esta infidelidade possível ou invisível até ser descoberta? Como sintoma relacional, fica claro que se trata de um sinal de que algo precisa de ser reequilibrado no casal. Talvez haja uma distribuição desigual de poder ou controlo subjacente ao dinheiro, ou um padrão de evitamento de conflitos, ou ainda uma carga emocional invisível atribuída ao dinheiro. Importa, assim, olhar para as fragilidades emocionais, padrões familiares herdados e dinâmicas conjugais silenciosas.
Com a terapia sistémica para casais é possível chegar ao cerne da questão e recolocar a confiança como eixo central da relação. A verdade, mesmo dolorosa, precisa de ser dita num espaço seguro. Também aqui se mostra determinante explorar as histórias familiares de cada um, de forma a tomarem consciência de onde aprenderam a lidar com dinheiro, se é que aprenderam. E de que modo, com transparência, com culpa, com merecimento ou vergonha? A terapia nestes casos permite também reequilibrar as responsabilidades de cada um dos membros do casal e restabelecer a sua comunicação. Na verdade, criar rotinas de diálogo financeiro pode ser tão importante quanto as questões de intimidade, e ao transformar o problema num ponto de encontro, o casal pode sair mais forte, com uma nova gramática de confiança e intimidade.
Trabalhar sistemicamente o tema do dinheiro é olhar para a as histórias familiares de cada um, para as crenças e lealdades invisíveis dos seus sistemas de origem, desvendando a forma como lidam com o valor, a troca e a abundância.
Quando se respeita essa energia, o dinheiro deixa de ser um peso ou tabu e passa a ser instrumento de liberdade, apoio para os nossos sonhos e ponte para relações mais saudáveis.
Porque, no fundo, reconstruir a confiança entre um casal é também um verdadeiro ato de amor.
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