UMA LEITURA JURIDICA E SISTÉMICA DO SILÊNCIO
Apneia, de Tânia Ganho, é um romance que explora a complexidade da violência doméstica e os desafios enfrentados no sistema judicial. A narrativa centra-se em Adriana, uma mulher que, após cinco anos de casamento, decide separar-se do marido italiano, Alessandro, e luta pela custódia do filho de ambos, Edoardo. Alessandro, incapaz de aceitar a separação, transforma a vida de Adriana num verdadeiro inferno, recorrendo a manipulações e estratégias para dificultar a sua relação com o filho.
A história reflete o mundo sombrio da violência conjugal e parental, expondo os limites da resistência psicológica e os meandros de um sistema judicial por vezes incompreensível e desumano. Destaca-se pela crua autenticidade com que retrata o estado de guerra em que vivem muitas famílias afetadas pela violência doméstica, provocando uma reflexão profunda sobre a realidade de muitas pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, que enfrentam situações semelhantes. Além de ser uma obra literária obrigatória pela sua atualidade, serve de base a um estudo de caso observado à luz do direito sistémico e da abordagem transgeracional.
Adriana não está apenas a tentar separar-se de Alessandro; está a tentar sobreviver a um sistema que não reconhece o invisível e desconsidera o silêncio a que se remeteu durante muitos anos. A manipulação psicológica, a alienação parental e o abuso emocional não deixam nódoas negras, mas deixam feridas profundas, contínuas e desestabilizadoras. E aqui surge a primeira questão que suscita: o direito tradicional, baseado em factos observáveis, tem dificuldade em lidar com o intangível e com todas as dinâmicas ocultas que estão na base da trama. A pergunta que Apneia nos impõe é clara: como se protege quem não consegue provar o medo? Como se escuta o grito mudo de quem vive em constante vigilância emocional? Como se transforma uma relação parental adoecida numa outra que garanta um crescimento saudável dos filhos?
Sob o olhar do direito sistémico, influenciado pelas constelações familiares e pela Psicogenealogia e terapia transgeracional, percebemos que os protagonistas não são apenas indivíduos isolados, mas expressões vivas de histórias familiares mal resolvidas. Alessandro pode carregar o eco de exclusões ou feridas ancestrais masculinas, repetindo um padrão de controlo e violência. Adriana, por sua vez, pode estar presa a lealdades invisíveis de submissão e sacrifício feminino, transmitidas geração após geração.
O direito sistémico propõe que o conflito judicial, longe de ser apenas um embate de factos e argumentos, é também a expressão de um campo sistémico em desequilíbrio a pedir para ser olhado. A pergunta “quem tem razão?” dá lugar a “que dor antiga está aqui a ser repetida?” A solução deixa de ser ganhar ou perder, para se transformar na que aporta paz para todo o sistema, ou seja, para todas as partes envolvidas.
No centro do conflito está Edoardo, símbolo da geração seguinte e espelho do desequilíbrio parental que vivem seus pais. A justiça tradicional clama pelo princípio do “superior interesse da criança” para encontrar a solução, solução essa que passa exclusivamente pela sua aplicação aos factos constantes do processo na ótica da razão de forma abstrata, por vezes automática. Mas Apneia desafia-nos a perguntar sobre o que está para lá de um pai controlador e manipulador e de uma mãe que se deixa controlar e manipular? E como realmente perceber e integrar o superior interesse da criança perante laços com progenitores disfuncionais? Na verdade, o direito sistémico permite perceber o risco de as crianças assumirem inconscientemente papéis parentais, tentando salvar os pais ou equilibrar o sistema familiar quando se revela caótico. Edoardo não é apenas uma vítima, um observador, é um humano portador de graves consequências futuras, um potencial reprodutor do mesmo ciclo se o padrão não for interrompido agora. Por isso importa olhar para a causa deste desequilíbrio e torna-lo consciente. A cura e a paz do sistema só assim serão possíveis.
Car Jung sugere que todos temos uma sombra, os aspetos reprimidos e não integrados da psique. Alessandro projeta a sua sombra em Adriana, tentando controlá-la, como se ela representasse algo dele próprio que não consegue aceitar. Adriana, por sua vez, pode estar a lutar contra a sua própria sombra, o medo da fraqueza ou da submissão, o que a torna presa de um conflito interno. Além disso, o arquétipo da “mãe ferida” e do “pai tirano” podem estar presentes, influenciando não só a relação de Adriana e Alessandro, mas também o desenvolvimento de Edoardo. A forma como este menino vive e interpreta a guerra dos pais pode moldar a sua perceção de masculinidade, amor e poder no futuro.
Numa leitura jurídica tradicional, os sistemas penal e civil servem para punir, reparar ou proteger, o que nos casos de violência emocional e manipulação familiar se afigura frequentemente insuficiente. A atuação judicial, sendo cega a toda a complexidade emocional e sistémica, bem como à história familiar das partes envolvidas, corre sérios riscos de se tornar cúmplice da perpetuação da violência. Mais do que sentenças que ditam quem perde e quem ganha, é urgente implementar um novo paradigma que encontre na paz do sistema a solução para a demanda, o que pressupõe que juízes, advogados e técnicos tenham formação sistémica em dinâmicas familiares, violência psicológica e trauma relacional.
Apneia extravasa a narrativa sobre violência doméstica, sendo um espelho da complexidade das heranças emocionais familiares. Para Adriana, romper este ciclo é muito mais do que um ato de coragem. É um caminho para se libertar de lealdades invisíveis e permitir que o filho cresça sem carregar os ecos do trauma transgeracional.
Daí ser um convite para que os advogados, juízes, terapeutas e mediadores olhem para além dos papéis de vítima e agressor, considerando as lealdades inconscientes, os excluídos familiares e os padrões repetitivos. Trazer esta perspetiva para o espaço jurídico permitirá que, além da justiça formal, haja um movimento de reconciliação interna para todos os envolvidos.
Porque a verdadeira justiça não é aquela que pune ou absolve, mas a que compreende, honra e liberta. Porque há dores que só cessam quando se encontram. E a justiça só acontece quando, finalmente, se escuta o silêncio e o que foi silenciado.
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