E A ARTE DOS SENTIDOS
“Comer é uma cerimónia voluptuosa, e a mesa é o altar onde celebramos a comunhão da vida.”
Em Afrodite, contos, receitas e outros afrodisíacos, Isabel Allende propõe uma narrativa singular que combina autobiografia, gastronomia e erotismo, dissolvendo as fronteiras entre literatura e a vida quotidiana. O livro é muito mais do que uma coletânea de receitas afrodisíacas. Trata-se, na verdade, de um manifesto cultural que entende o prazer como linguagem universal, enraizada no corpo e cultivada através dos cinco sentidos.
Ao abordar o erotismo, Allende aproxima-se de uma tradição que encontra ressonância em Georges Bataille, que via no erotismo não apenas a experiência do desejo, mas a possibilidade de transcendência e comunicação profunda entre seres humanos. Tal como em Bataille, o erotismo em Afrodite ultrapassa o instinto biológico, assumindo-se como espaço de criação, jogo e imaginação.
A fusão entre gastronomia e sensualidade também remete para Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, onde o amor é apresentado como linguagem fragmentada, feita de gestos, símbolos e sinais. O ato de cozinhar em conjunto, ou de partilhar uma refeição com presença plena, converte-se em signo do vínculo conjugal, uma materialização estética do afeto.
A proposta de Allende inscreve-se ainda numa longa tradição cultural em que o banquete é entendido como espaço de encontro erótico e intelectual. Desde o Banquete de Platão até aos rituais cortesãos do Renascimento, a mesa foi concebida como metáfora da vida em comum: lugar onde se alimenta o corpo, mas também onde se cultivam a palavra, a imaginação e o desejo.
Em Afrodite, esta herança reaparece em chave contemporânea. O prazer gastronómico é o prelúdio da intimidade física, e ambos convergem no mesmo princípio da valorização do tempo partilhado e da experiência sensorial como formas de resistência ao ritmo fragmentado do quotidiano moderno.
Para os casais, o livro oferece-se como sugestão de intimidade baseada na redescoberta dos sentidos. A visão é convocada pela estética da comida e pela contemplação do outro; o paladar e o olfato, através da experiência gustativa que antecede ou prolonga o encontro amoroso; o tato, pela lentidão dos gestos; a audição, pela música, pela palavra ou pelo silêncio partilhado.
Esta proposta aproxima-se da ideia de Esther Perel, que defende que a vitalidade do desejo conjugal depende da capacidade de reinventar o olhar sobre o parceiro e cultivar a curiosidade mútua. Em sintonia, Allende propõe que a imaginação sensorial, mais do que a repetição de gestos, é a chave para prolongar a intensidade da relação.
Afrodite deve ser lido como uma estética do viver em casal, para além da celebração da culinária afrodisíaca que efetivamente também é. Ao aproximar o erotismo da arte e da gastronomia, Isabel Allende sugere que a intimidade conjugal pode ser continuamente reinventada através da exploração consciente dos sentidos. Em diálogo com tradições clássicas e reflexões modernas sobre o erotismo, a obra inscreve-se como uma proposta cultural e pedagógica, pois amar é também saborear, tocar, cheirar, olhar e escutar, e a arte dos sentidos é, em última instância, a arte de viver juntos.
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