“O amor cresce quando olhamos para o que foi e dizemos: sim.”
Bert Hellinger
Todos os anos o Natal chega envolto na promessa de união e alegria partilhada. As luzes brilham nas ruas e os enfeites multiplicam-se, parece quase um dever estarmos felizes e em harmonia sob a estrela da consoada. Porém, quem nunca sentiu, à mesa de Natal, a tensão discreta de um silêncio prolongado, o peso incómodo de uma comparação ou a lembrança de uma velha ferida familiar não resolvida?
A verdade é que o Natal é um palco privilegiado para as dinâmicas familiares se revelarem. Não porque falhemos na intenção de criar harmonia, mas porque estes reencontros fazem emergir forças invisíveis que nos ligam, tudo aquilo a que chamamos Ordens do amor. Falamos da necessidade de pertença, do equilíbrio entre o dar e o receber, e da ordem nas relações. Cada família, reunida nesta época, ativa esses laços invisíveis que tecem a sua história.
Em cada cadeira ocupada, assim como em cada cadeira vazia, existem histórias inteiras. O filho “responsável” ainda visto como a âncora da família mesmo quando adulto. A irmã que se sente à sombra, desvalorizada. O lugar vazio do avô ausente, cujo nome surge num brinde emocionado ou cuja memória se evita em silêncio. Tudo isto marca presença, mesmo que nada seja dito em alta voz. E o que se cala pesa tanto ou mais quanto o que se fala.
Por isso é tão comum que no Natal, lugar de (re)encontros, as dinâmicas familiares se revelem. Onde há alguém excluído, pode surgir conflito. Onde o fluxo de dar e receber não circula livremente, instala-se o ressentimento. Quando um membro carrega um fardo que não lhe pertence, o mal-estar emerge. Esse desconforto, longe de ser um fracasso da reunião familiar, é muitas vezes um convite a olhar com mais consciência para aquilo que pede para ser visto e reconhecido.
A perspetiva sistémica convida-nos a renunciar à expectativa da perfeição e a abraçar a aceitação das coisas tal como são. Nem harmonia forçada, nem conflito varrido para debaixo do tapete, apenas a verdade dos vínculos tal como são. Quando reconhecemos genuinamente o que cada um traz consigo e damos lugar também aos ausentes; quando aceitamos as diferenças em vez de tentar apagá-las, algo silencioso mas profundo se transforma. O Natal deixa então de ser um palco de tensão para se tornar um espaço de reconhecimento mútuo.
Talvez este ano possamos perguntar, não como evitar conflitos, mas sim o que este encontro familiar nos revela sobre a nossa história comum. Porque por detrás da harmonia aparente e do conflito latente corre um fio invisível mais profundo: o vínculo que une e que, apesar de todas as imperfeições e mágoas, nos lembra que pertencemos uns aos outros e a algo maior.
Um dos aspetos desse vínculo expressa-se na troca de presentes. No Natal, os presentes costumam ocupar o centro das atenções, amontoando-se debaixo da árvore, gerando expectativas, por vezes ansiedades e comparações. No entanto, a essência dessa troca vai muito além dos embrulhos coloridos ou do valor material. Cada presente oferecido ou recebido é símbolo do movimento do dar e receber que sustenta as relações humanas. Dar um presente nunca é apenas um ato de consumo ou uma formalidade social, é uma expressão simbólica de afeto, de reconhecimento, de pertença. Quando oferecemos algo, deixamos um pedaço de nós no outro. Quando recebemos, acolhemos não só o objeto em si, mas também a intenção e o laço afetivo de quem o deu. Por isso, um presente simples, dado com sinceridade e de coração, pode tocar mais fundo do que outro muito caro entregue por mera obrigação ou hábito.
Mas quando este fluxo natural do dar e receber se desequilibra, surgem tensões. O excesso pode pesar tanto quanto a escassez. Quem oferece demais talvez, sem o perceber, tente comprar amor ou compensar ausências, mantendo o outro numa dívida invisível. Quem oferece de menos pode estar a repetir padrões antigos de medo, de escassez ou de desvalorização. E quem não se permite receber ergue um muro silencioso na relação, pela dificuldade em aceitar apoio, cuidado ou amor, bloqueando a energia que gostaria de circular entre os corações.
No cenário natalício, estas dinâmicas tornam-se visíveis a olho nu. A criança que recebe pouco sente-se menos amada. O adulto que se endivida para oferecer mais do que pode acaba por carregar culpa e ressentimento. O silêncio de quem fica à margem da troca de presentes pesa tanto quanto um presente rejeitado. Tudo isto mostra que não estamos realmente a falar de objetos, e sim daquilo que eles representam, os laços de amor e consideração entre as pessoas.
Equilibrar este dar e receber é fundamental para restaurar a harmonia genuína. Na visão sistémica, um fluxo equilibrado de troca é visto como o coração vivo das relações, o que mantém a ligação entre as pessoas e nutre a pertença e o amor. Quando cada um dá de forma consciente, sem excesso nem retenção, apenas o que lhe é possível e verdadeiro, cria-se espaço para que o outro também possa dar à sua medida. Assim nasce um círculo virtuoso, o amor circula e, com ele, renasce a confiança.
A grande questão é, assim, “como posso estar presente?”. Isto porque o maior presente que podemos dar a alguém (e a nós próprios) é a nossa presença genuína, uma escuta atenta, um abraço sincero, uma palavra de reconhecimento verdadeiro. Esses gestos simples, sem laço nem papel de embrulho, criam memórias vivas e vínculos que perduram muito para além da noite festiva.
É nesta presença atenta, amorosa e grávida de gratidão pelo que cada ligação é que reside a essência do Natal. Mais do que os presentes empilhados sob a árvore ou a impecabilidade dos preparativos exteriores, vale a presença calorosa, a alma viva do encontro familiar. Os presentes passam. Mas a presença, essa, permanece.
Comentários recentes