UM TESTEMUNHO DE CURA DA CRIANÇA INTERIOR ATRAVÉS DA HIPNOTERAPIA
“Tentei não fazer nada na minha vida que envergonhasse a criança que fui.
Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei de mão dada com essa criança que fui.”
José Saramago
Quanto tempo demorei a encontrar a criança que há em mim?
Quanto tempo precisei para reconhecer as feridas da minha criança?
Quanto tempo levei para descobrir que adultecer é escolher viver uma vida mais leve, e que esta leveza está intimamente ligada à cura da criança interior?
Este é o testemunho de alguém que demorou cinquenta anos a iniciar a grande viagem de resgate da criança interior e a perceber que há um mundo dentro de cada um a ser explorado. Este é o meu testemunho, e é também o grito feliz da criança que há em mim e que esteve fechada a sete chaves no silêncio profundo do sofrimento original que carregou tantos e tantos anos.
Trata-se de um resgate essencial para curar as feridas da infância e potenciar o adulto que sou na humanidade que me assiste, uma forma de viver a solidão como um espaço seguro e necessário para escutar a criança que fui e, assim, me conectar com ela, com a sua dor, fazendo com que os desafios sejam hoje sentidos e vividos de um lugar possível. Trata-se de curar o meu coração, de ir à origem e ser capaz de reconhecer o tanto que dói no que mais amo. Porque na verdade, só dói o que se ama.
Alice Miller, uma reconhecida terapeuta da criança interior, diz que “não são os traumas que sofremos na infância que nos tornam emocionalmente doentes, mas a incapacidade de os expressar”. A questão é, como expressá-los? Como reconhecê-los? Como aceder a esse mundo interior lá da infância cheio de histórias e experiências, de relacionamentos e dinâmicas familiares que moldam a minha visão do mundo? Quando a memória me bloqueia tudo isto e percebo vida fora que este inconsciente domina as minhas ações, não restam dúvidas que a chave para encontrar e curar todas as feridas está nesse mesmo inconsciente que gravou toda a informação básica que me move. Por estratégia de sobrevivência, durante muitos anos fiz parte dos que apostam no esquecimento como forma de minimizar a dor e os problemas, mas como anunciou Carl Jung, “tudo aquilo a que resistimos, persiste.”
Era tempo de transformar a experiência básica da infância e cuidar das feridas primordiais, essas raízes de tantos problemas e doenças, sendo “o acesso emocional à verdade (…) condição indispensável para a cura”, como ensina Alice Miller. Verdade que chegou até mim através de um processo terapêutico de hipnose, um processo que me permitiu lidar com traumas emocionais e padrões disfuncionais enraizados na infância. O recurso à hipnoterapia foi transformador e essencial, pois conduziu-me ao encontro com a minha criança ferida, o ponto de partida para o trabalho terapêutico de cura que abriu caminho para a resolução de questões emocionais profundas indispensáveis ao crescimento pessoal. Todos os modelos terapêuticos concordam ser a infância bem resolvida fundamental e determinante para a maturidade emocional que ambicionamos, o que pressupõe reconhecer, validar e transformar as experiências dolorosas da infância. É deste processo de cura da criança interior que emerge a “criança maravilhosa” que Carl Jung apresentou como energia vital da vida.
No dia 10/10 nasceu um sol dentro de mim. Na sessão de hipnoterapia para cura da criança interior encontrei a minha criança interior, e de mãos dadas com ela reencontrei também alguém que tinha esquecido, pese embora ter sido muito importante na minha infância, no meu crescimento e na formação da pessoa que sou. Alguém com quem não privava há quase trinta anos. Nesse dia percebi que fugir da dor também cansa, e que a distância que me impunha daquilo que me causava dor era mais uma prisão do que solução, pois é sempre necessário voltar à raiz, ao princípio, ao lugar do sofrimento original para poder cuidar. E, cuidando, curar. Porque esse reencontro aconteceu, primeiro por hipnose através da indução de um estado de profundo relaxamento em que acedi a conteúdos internos que de outra forma não me foi possível, e depois fisicamente, num abraço demorado, tive oportunidade de me despedir dessa pessoa na hora da sua morte, cinco meses depois, com consciência, presença e total (auto)compaixão. Ter estado próxima dessa mulher nos seus últimos meses de vida devolveu-me partes que me compõem e me permitem seguir inteira, de mão dada com a criança que fui.
Cuidar da criança interior é possível e é necessário.
Que este testemunho te lembre que também tu tens uma criança dentro de ti, e que estes encontros acontecem. No tempo certo, quando o existir não basta. Quando não é mais possível segurar a força do movimento que a vida nos oferece no momento em que nasce um sol dentro.
Artigo publicado na Revista SIM n.º 295 | junho 2024
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