"A Infância é um Chão que Pisamos a Vida Inteira" Lya Luft
Imaginem um encontro de dezenas de pessoas no Parque da Cidade, no Porto, para um dia de partilha, dinâmicas sistémicas, constelações familiares e uma roda de conversa sobre a importância do amor na justiça e sobre a potência do conflito no desenvolvimento humano e na transformação do ser. Imaginem tudo isto com sol, pés descalços, mantas espalhadas pela relva, almoço sob as árvores que tocam o céu, um lago com patos, riso, choro, abraços e silêncio, terreno fértil para acolher a criança que temos dentro num encontro feliz com a (nossa) infância.
E porque a vida acontece num diálogo permanente connosco, não por acaso, certamente, tudo isto aconteceu sob o olhar de crianças que espreitavam por detrás de uma grande árvore que abraçavam, tanto quanto abraçavam a curiosidade e espontaneidade de quem explora um mundo novo com sede do primordial e com a leveza de quem se permite ser surpreendido. Quando o que acontece fora dialoga estreitamente com o que acontece dentro, ganha significado e dá sentido ao que acontece. Quando se espreita atrás da árvore uma parte de nós decide avançar em busca do desconhecido, em busca do real que a vida nos apresenta como a verdadeira felicidade, a que acontece no agora, a possível, deixando para trás o mundo ideal em que sempre nos adiamos.
Carl Jung, o psiquiatra suíço fundador da psicologia analítica, definiu o conceito de “criança interior” como parte da sua teoria do inconsciente e da psicologia profunda. A “criança interior” refere-se a uma parte da psique humana que contém todas as experiências, emoções e memórias da infância, essa parte da personalidade que é representada simbolicamente como uma criança dentro de nós.
Jung acreditava que a criança interior desempenha um grande poder e influência na vida adulta, ensinando que as experiências da infância, tanto positivas quanto negativas, moldam as nossas crenças, comportamentos e emoções. Se essas experiências foram positivas e nutritivas, a criança interior é vista como uma parte saudável e criativa de nós mesmos. Por outro lado, se enfrentamos traumas ou experiências negativas na infância, a nossa criança interior pode carregar feridas emocionais que continuam a nos afetar ao longo da vida.
Entrar em contato com a criança interior é parte fundamental do processo de autoconhecimento e crescimento pessoal, pois é abraçando a vulnerabilidade que nos poderemos reconhecer no encontro com o outro, trabalhando para curar as feridas emocionais e resgatar a autenticidade quase sempre perdida no adultecer. Ignorar ou reprimir a criança interior pode levar a problemas emocionais e comportamentais ao longo do tempo.
Jung também via a criança interior como uma fonte de criatividade, imaginação e intuição. A conexão com essa parte de nós permite aceder a recursos internos únicos e encontrar novas formas de lidar com os desafios da vida. Trata-se, uma e outra vez, da importância de olhar para dentro de nós mesmos, abraçar as experiências vividas na infância e cuidar para curar, integrando tudo o que somos na nossa vida adulta. Não há como fugir da vida. Tudo faz parte, o abandono, a rejeição, o afeto, a dor, a curiosidade, o medo, a alegria e a tristeza. Tudo, sem exceção. Quando integramos tudo o que somos encontramos o caminho de regresso a casa.
É sobre voltar à infância, e não sobre voltar a ser criança.
É sobre sentir a força que a nossa criança tem dentro de nós, e a potência que ela pode ser para uma vida adulta mais alegre e com mais leveza.
É sobre a capacidade de nos conectarmos com o que há de mais verdadeiro e único em nós.
É sobre resgatar a coragem de ser quem somos, recordando a capacidade infinita de criarmos e de nos reinventarmos todos os dias.
É sobre descobrir que os grandes encontros acontecem ao nível do imprevisto.
É, acima de tudo, sobre confiar. Entregar. Sonhar.
É sentir nos olhos de uma criança que um dos grandes mistérios da vida é perceber que nunca estamos sós.
Comentários recentes