Olhar a herança com uma visão sistémica é olhar a herança como um presente.

“Os pais dão, os filhos recebem”, ensina Bert Hellinger. Recebem como um presente, não como uma qualquer obrigação de quem parte. Muitas vezes quem parte não teve sequer a intenção de deixar algo, apenas viveu e morreu. Outras vezes, a pessoa manifesta a intenção clara de deixar os seus bens como presente a alguém, sendo fundamental incluir essa vontade, assim como respeitar profundamente as ordens do amor (pertencimento, hierarquia e ordem), afastando, assim, os obstáculos a uma efetiva e verdadeira solução para o conflito.

Se o conflito acontece na maioria das vezes entre pessoas com especial importância entre si, no domínio das heranças e sucessões isso acontece no seu expoente máximo, pois é onde os laços emocionais são mais fortes e associados à dor da morte: no núcleo de um sistema familiar. Olhar um processo destes sob uma perspetiva sistémica permitir-nos-á usar a história dessa família na busca da solução que se pretende, sendo fundamental perceber o lugar de cada um no sistema e o respeito pelas ordens do amor, para depois melhor poder aplicar as normas jurídicas em causa. Para o Dr. Sami Storch, juíz de direito, esta abordagem sistémica no direito acarreta enormes vantagens, atendendo a que a solução do conflito atende a muito mais do que às normas jurídicas, indo às suas causas mais profundas e transpondo o que se apresenta como motivo aparente no processo.

Quando olhamos sistemicamente para um conflito entre herdeiros, ou quando as heranças estão bloqueadas durante muito tempo, podemos entender esse conflito e esse tempo como a forma encontrada por esse sistema de se manter ligado entre si, numa espécie de alerta que pede para se olhar algo que ainda não foi visto. Algo que clama para ser integrado ou reposicionado. Na verdade, o tempo que leva a desemaranhar uma herança diz muito do tanto que está por ser visto no sistema.

Isto acontece porque nos processos de herança, mais do que da transferência de bens e coisas materiais, estamos perante a transferência de sentimentos e sensações que acompanham os próprios bens, tudo o que compõe a herança imaterial em causa (a história da família, a religião, as suas dores, os costumes, valores, etc) . É uma espécie de “animus” que integra os bens que passam de quem parte para quem fica, ou seja, da vida dos próprios bens.

Isto porque, sistemicamente, antes da discussão da divisão dos bens opera o tratamento das questões emocionais e transgeracionais das partes e dos próprios bens. Na verdade, este olhar ampliado permite que os herdeiros cheguem à raiz do conflito, possibilitando também que encontrem uma solução com a observância das leis do amor. E assim poderão fazer justiça, se encontrarem paz para o sistema em conflito, o que sucede quando todos os envolvidos sentem que pertencem, que há equilíbrio entre o dar e o receber e respeitem a hierarquia que existe entre si. Só assim a herança poderá ser tomada sem qualquer julgamento, e aceite tal como é, honrando-se verdadeiramente quem partiu.

O facto de a lei limitar ao autor da herança a liberdade total de disposição dos seus bens causa muitas vezes conflitos entre os herdeiros, o que numa perspetiva material pode ser entendido como uma bênção ou uma maldição, carregando em si todo o peso que vem com ela. Como nos diz Bert Hellinger, tal como acontece com as pessoas, o património representado pelos bens (corpóreos e incorpóreos) possui uma memória, que carrega o peso ou a leveza de como foi adquirida, se fruto do trabalho ou resultado de vantagens sobre alguma coisa ou alguém, ainda que não haja responsabilidade pela perda, dano ou morte.

Assim, é fundamental que os herdeiros ocupem o seu próprio lugar. Que os filhos estejam no lugar de filhos, e não numa posição de lealdade com um tio ou outro familiar qualquer, pois se não estiverem no seu lugar, dificilmente receberão algo. Quem não está no seu lugar e age em função de lealdades inconscientes ou de uma ferida da alma, por exemplo, vai exigir e reclamar mais e mais, sinalizando um desrespeito sistémico qualquer. Num processo estritamente judicial isto não é visto, mas com o recurso a uma constelação familiar sistémica, à psicogenealogia e/ou à análise transgeracional é possível ver o lugar onde se encontram esses irmãos, bem como reposicioná-los no lugar certo. O excluído é integrado e a reclamação perde força. Quando os irmãos se conseguem ver podem movimentar-se em direção ao lugar que lhes corresponde. De alguma forma, quando isto acontece, o conflito termina e as partes tendem a chegar a um acordo que satisfaz as suas necessidades dentro do sistema, que importam muito mais do que a parte que corresponde ao seu quinhão legal.

Por vezes, pode acontecer que este acordo não satisfaça formal e positivamente o que dita o sistema jurídico em causa, mas a aceitação profunda e incondicional por parte dos herdeiros de tudo o que vem dos seus pais e dos seus ancestrais, dá lugar à aceitação do seu lugar no sistema e da vida tal como ela é. E daqui resulta o cumprimento do propósito maior de todas as heranças, a simbiose perfeita entre a herança material e a imaterial, como um verdadeiro presente ao serviço de algo maior. Um presente ao serviço da vida.