Nuran Evren Sit, escritora e argumentista turca, autora da série “Um Novo Eu” (Another Self) da Netflix que retrata com uma beleza extraordinária as constelações familiares para um universo de milhões de pessoas, conta-nos um pouco da sua história e do quão transformador foi viver no Brasil quando tinha 18 anos. Uma mulher que encontra a coragem e inspiração nos seus antepassados, e que, honrando-os, dá voz a histórias que precisam de ser contadas num propósito muito consciente de mudança de paradigma. Um ser à frente do seu tempo, igual a muitos outros filósofos, pensadores e poetas turcos. Uma escritora que faz das palavras a ponte entre o profano e o divino. Uma luz no Affectum.
Ao ver a série “Um Novo Eu” (Another Self) senti que a personagem principal eras tu, a sua criadora. Para além do impacto da história da viagem transformadora das três amigas que escolhem curar as suas feridas, fica-me o olhar de quem ousou ir mais longe e quebrar paradigmas. Alguém com coragem de contar ao mundo uma história que vai necessariamente inquietar e gerar muita controvérsia.
Quem é Nuran Evren Sit, a mulher por detrás da série Um Novo Eu ( Another Self)?
Muito obrigado por esta pergunta incrivelmente profunda e simples. Quem eu sou, é tudo sobre o que passei na minha vida e com quem interagi e o que consegui desta viagem até agora. Então, tudo muda e evolui a cada dia.
O meu nome é Evren, que significa “O Universo” em Turco. Nasci e cresci em Ancara, capital da Turquia, numa família humilde. Tornei-me atriz em criança quando tinha 8 anos de idade e foi aí que decidi que queria trabalhar em Cinema e TV quando crescesse. Na adolescência, dediquei-me a ganhar experiência “suficiente” na vida para me tornar cineasta. Naquela época não sabia que não existe a tal coisa de “experientes o suficiente”. Aos 18 anos, fui morar para o Brasil num intercâmbio de estudantes durante um ano. Essa experiência foi um ponto de viragem na minha vida, agora que vejo, imaginei que do outro lado do mundo numa cultura totalmente diferente, todos nós partilhamos os mesmos sentimentos e as mesmas histórias. A minha família brasileira, a Família Neves, ensinou-me muito sobre como viver esta vida de uma forma alegre e solidária. (Quero agradecer-lhes muito por me aceitarem como sua família, e à minha irmã Amanda Neves, que é uma marca na minha vida, e que partiu há 2 anos atrás por causa do cancro. Eu não podia fazer esta série se no meu caminho não me tivesse encontrado com eles…).
Depois de regressar à Turquia com uma visão totalmente diferente da vida, estudei Cinema e Televisão na Universidade de Belas Artes Mimar Sinan em Istambul, onde tive professores incríveis e mentores que foram os mestres do cinema turco. Realizei curtas-metragens escritas e dirigidas por mim. Depois trabalhei em filmes como assistente de realização e no departamento de casting. Mas não consegui sentir-me satisfeita. Precisava contar histórias. E foi assim que comecei a trabalhar como argumentista. Há 16 anos que escrevo filmes e programas televisivos. Sempre tive a curiosidade pelas histórias, memórias, dores e alegrias de outras pessoas. E eu sinto-me tão sortuda pois a minha profissão tem tudo a ver com isso.
Há alguns anos atrás, encontrei uma carta que o meu avô me escreveu quando eu tinha 6 anos, dizendo que o meu nome Evren tem muito a ver com o meu carácter e com o meu futuro. Ele escreveu que podia imaginar-me a contar histórias a todo o mundo, honrando o meu nome e fazendo com que as pessoas se reúnam à volta de um filme, de um livro ou de uma peça de teatro. E essa carta extraordinária deu-me coragem para escrever “Um Novo Eu”…
“Um Novo Eu” (Another Self) faz um retrato extraordinário das armadilhas psíquicas da dinâmica familiar que tantas vezes nos condicionam e prendem a histórias vividas pelos nossos antepassados. Viver para contar, foi isso que aconteceu?
Talvez… Tenho observado os efeitos das histórias das nossas famílias nas nossas vidas ao longo dos anos. É tão óbvio quando se presta realmente atenção a isso. Penso que quem somos todos nós é muito sobre como utilizamos o nosso passado para construir o nosso futuro.
“Viver para contar” é o que eu faço inconscientemente, acho eu. É como quando eu escrevo, personagens, eventos, os diálogos vêm de algum lugar onde já estive antes. Quando medito e me foco neste ofício com a intenção de deixar que a minha escrita seja o caminho que o coletivo mais precisa, com as palavras que precisam de ser ditas em voz alta e que inspiram as pessoas… As palavras vêm facilmente. Sinto que estou a canalizar o que já lá está para todos. Tento não ficar presa em julgamentos, tomando partido, ou tentando dar uma interpretação à audiência quando escrevo.
Na série, Zaman utiliza uma técnica de psicoterapia a que chamam “expansão da família de origem”, que coincide com as constelações familiares criadas por Bert Hellinger, um psicoterapeuta alemão. É a mesma coisa?
É bastante semelhante e com base na sua técnica, sim. O nosso consultor Sabri Salis teve a sua formação com estudantes de Hellinger na Alemanha. Participou em cerca de 1000 sessões de constelações familiares, incluindo algumas com o próprio Hellinger. E quando regressa à Turquia, integra toda a sua experiência nesta terra, na cultura da Anatólia. A dinâmica familiar e o património cultural da Turquia é muito diferente e único, por isso teve que ser adaptada. Por conseguinte, não posso chamar-lhe “a mesma coisa”, mas de um modo geral, qualquer que seja o nome que damos a isto em diferentes países, o objetivo é comum. Compreender e aceitar o nosso passado…
Como chegou à tua vida esta ferramenta de “expansão da família de origem” tão bem retratada na série? Qual foi o click para despertares para o mundo da ancestralidade?
Participei numa expansão família de origem há 5 anos com Sabri Salıs. Foi uma experiência muito forte e profunda. Desde então, continuei a experimentar e a pesquisar o conceito. À medida que imaginava como a minha vida mudava desde então – não só a minha, mas também a dos meus amigos e das pessoas que participavam nesses estudos – tornou-se inevitável escrever sobre o assunto. Sabri Salıs e Gulcin Onel ofereceram-me todo o apoio se eu escrevesse uma série sobre o assunto. E 4 anos mais tarde dessa conversa, senti-me pronta para escrever sobre isso. Eles foram os consultores do guião, e tivemos um trabalho muito detalhado sobre este tema em conjunto. O processo total de escrita foi como uma terapia para mim. Já assisti a muitas sessões e li quase tudo o que pude encontrar sobre o assunto. Antes de convencer os produtores, atores e a rede, tinha de estar realmente segura sobre o que estava a contar. E fi-lo. Não sou perita no assunto, mas acompanho-o, sou uma observadora e contadora de histórias, por isso “Um Novo Eu” é a minha forma de contar histórias, não um documentário sobre a expansão da família de origem. Também quando te apercebes que escrever dramas televisivos é uma forma enorme de comunicar com pessoas de todo o mundo, deves realmente ter cuidado com o que estás a dizer na tua história.
Se tivesses uma oportunidade para contar ao mundo uma história, o que seria? O que significaria? O que é que inspiraria as audiências? Penso que a carta do meu avô teve muito a ver com o meu conceito de escrita. Honro os meus antepassados por me terem dado esta coragem e inspiração. Honro respeitosamente cada um deles, através da minha existência e pelo que faço.
O que representa para ti a escrita? Pelas series que criaste (Another Self e The Gift), sinto que a escrita é uma forma de dares voz a algo muito forte em ti, como se fosses uma espécie de mensageira da nova era. O que sentes em relação a isto?
Venho de uma terra de grandes poetas, filósofos, escritores, e pessoas revolucionárias, tais como Rumi, Şems, Hacı Bektaş… ultimamente Mustafa Kemal Atatürk. Todos eles estavam para além do seu tempo; todos eles trouxeram novas formas de pensar e de viver para as pessoas. Todos eles tiveram a coragem de lutar, de quebrar tabus, de iluminar as pessoas. Todos mudaram a vida de gerações e ainda estão a mudar. Esta terra, Turquia, Anatólia, tem muito a oferecer ao mundo no sentido da sabedoria, perceção da unidade. Esta terra é uma ponte que liga o Oriente e o Ocidente, o moderno e o tradicional, a ciência e a espiritualidade. Esta terra tem vivido muitas guerras, tragédias, tantas mudanças ao longo dos séculos. Tem milhares de anos de experiência num centímetro do seu solo. Por isso, eu gostaria de transportar um pouco da herança mágica desta terra nas minhas veias. Qual é a minha mensagem ao mundo como Evren… Não uma cópia do que já foi dito antes. Esta é uma pergunta que carrego comigo desde criança. Acho que ainda não encontrei a resposta, mas tento dizer aquilo em que acredito verdadeiramente, só posso escrever sobre o que me parece honesto. Como escritora, gosto mais de fazer perguntas do que fazer declarações. Tento ter empatia em vez de juízos de valor. Todos nós somos uma gota no mar, mas a gota em si contém a eternidade, como dizia Rumi…
Bell Hooks, no seu livro “Tudo sobre o Amor” diz que o futuro é ancestral. O que dizes tu?
O futuro é agora. O que fazemos agora faz o futuro. Acredito que estamos ligados ao nosso passado, mas não estamos presos a ele. Somos alimentados a partir das nossas raízes, tanto quanto alimentamos os nossos futuros eus. Somos o passado dos nossos filhos. Essa consciência é tudo o que precisamos para construir o nosso futuro. O destino é um conceito com o qual podemos interagir.
Qual é hoje o grande desafio do ser humano?
Assumir a responsabilidade. Penso que este é um desafio comum que todas as nações sentem em todo o mundo. Precisamos assumir a responsabilidade das nossas ações e reações. Reclamar de tudo, mas não dar um passo, livrar-se das responsabilidades culpando outras pessoas, os nossos antepassados, as nossas famílias, os políticos, o COVİD, a poluição, seja qual for o seu nome, não nos leva a lado nenhum… O que fazemos na nossa vida quotidiana como pessoa para diminuir os factos de que nos queixamos? Qual é a nossa contribuição para este mundo? Como tratamos as pessoas à nossa volta? É tão fácil reclamar ou criticar, mas qual é a nossa melhor resposta ao que encontramos de injustiça?
“Nascemos para nos apaixonarmos”. Esta frase escrita no carro dos noivos no último episódio da série é uma mensagem para o mundo?
Esta frase perde-se na tradução, acho eu. Deveria estar, “Qual de nós, nunca se apaixonou como um louco”. É a letra de uma canção turca escrita por Ali Tekintüre. Mas se esta série tem uma mensagem, suponho que a letra da canção do tema principal da banda sonora de “Um Novo Eu”, poderia ser o melhor para a resumir.
“What if the past is not yet history,
It’s why my future gets away from me,
The bliss, the joy and the victory,
Are hidden in anotherself deep inside of me.
You came to smile, you came to cry,
You came to fail, then grow up high.
You came to fall, you came to love,
You came to remember we’re born to fly.”
“E se o passado ainda não for história,
É por isso que o meu futuro se afasta de mim,
A felicidade, a alegria e a vitória,
Estão escondidas no fundo de mim.
Vieste para sorrir, vieste para chorar,
Vieste para falhar, e depois crescer muito alto.
Vieste para cair, vieste para amar,
Vieste para te lembrares que nascemos para voar”.
Muito obrigada por esta entrevista…
Um abraço para Portugal, que desejo visitar um dia!
Parabéns å entrevistadora, pela forma objectiva como conduz a entrevista – suportada no filme da entrevistada.
Parabéns å entrevistada, pela forma clara como responde a todas as questões e expõe as suas experiências e vivências.
Para quem não é especialista na matéria e tem uma dificuldade assumida na interpretação destes “fenômenos” surpreendi-me com o modo como me senti envolvido na leitura da entrevista.
Parabéns uma vez mais.