NAIHARA CARDONA MARTINEZ, mãe de dois filhos, advogada, exerceu cargos públicos no município de Ibiza e é presidente da associação de advocacia sistémica em Espanha. Autora do livro “Derecho sistémico, lo que no te enseñaron en la facultad”, lançado este ano, convida a um novo olhar no sentido da pacificação do conflito.
Quem é a Naihara Cardona Martinez, a advogada ao serviço da reconciliação e da paz?
Naihara Cardona Martínez é uma pessoa que carrega muito sofrimento desde pequena. No meu livro explico isto, o mundo parecia-me tremendamente injusto e eu pensava que estudar direito poderia remediar parte dessa injustiça. Com o tempo percebi que trabalhar desde esta ferida, que certamente muitos advogados têm, me causou mais sofrimento, mais frustração. A certa altura as constelações familiares entraram na minha vida e, depois de um processo de desenvolvimento pessoal que me deu uma volta de 180º, comecei a aplicá-las com o Direito Sistêmico graças à descoberta do juiz brasileiro Sami Storch.
Em que momento da vida percebeste que “os problemas legais não existem”? Fala-nos um pouco do caminho que percorreste até chegar ao Direito Sistémico.
Na verdade, desde muito jovem já me envolvia em questões de desenvolvimento pessoal. Comecei a fazer terapia ainda criança, porque os meus pais me levaram, e tive a sorte de encontrar um grande profissional que sempre me mostrou o outro lado das coisas e me ensinou a entender as pessoas. Portanto, sempre vi com bastante clareza o pano de fundo emocional de cada conflito, embora não soubesse como aplicá-lo porque eu tinha as minhas próprias limitações. Uma coisa é a mente e outra é a alma, que às vezes nos prende em algumas histórias.
Chegar ao Direito Sistêmico não foi um caminho que escolhi, mas que me encontrou. Quando me separei do pai do meu primeiro filho, estava a passar por uma situação difícil, e sugeriram-me fazer uma constelação familiar. Fui sem pensar. Naquele primeiro momento, tudo me parecia muito estranho, pessoas a chorar e a representar coisas que me pareciam estranhas, e eu não podia confiar. Mas havia algo dentro de mim que me fez voltar. Assim, passei muito tempo a participar em constelações familiares para resolver os meus próprios problemas. Depois convenceram-me a fazer a formação em constelações, embora para mim fosse muito claro que não queria ser consteladora, e naquela dicotomia de reconhecer as constelações como algo útil e que me fazia bem mas não querer exercer aquela profissão. Então o juiz brasileiro Sami Storch apareceu na minha vida e eu entendi tudo: não se tratava de ser constelador, mas de trazer as constelações familiares para o mundo jurídico porque eu amava o meu trabalho. Assim comecei a procurar e a estudar o Direito Sistêmico, até hoje.
Como chegam as constelações familiares à tua vida? Que papel representam na descoberta do caminho do meio, daquele que aporta paz para todas as partes no conflito?
Como referi antes, foi quando me separei do pai do meu primeiro filho. As constelações desempenham um papel tão vital que mudaram o rumo da minha vida e da minha profissão.
Com as constelações familiares consegui criar um vínculo interior e me conectar com as minhas emoções, o que nunca tinha sido capaz de fazer ao longo da vida em todo o processo terapêutico. Eu tinha tudo muito claro na minha cabeça, tinha-me tornado um especialista no diagnóstico, mas não conseguia chegar ao corpo.
Com isso não quero dizer que ir ao psicólogo não funcione. É muito útil e ajudou-me a me conhecer melhor, a ter recursos e a encontrar soluções para certos conflitos. Na consulta com o psicólogo faz-se um bom trabalho, mas naquele momento da minha vida precisava que as emoções se expressassem, o que consegui, sem perceber, constelando; bem, ajudando os outros nas suas constelações, quando baixei a guarda porque pensava que não tinha nada a ver comigo. No entanto, para outras pessoas muito emocionais pode ser melhor trabalhar a parte mental com um psicólogo. Tudo é válido e necessário.
Para mim, as constelações têm muito valor, primeiro, porque o diagnóstico é muito mais rápido: é o que sai, e segundo, porque acedem diretamente ao inconsciente.
A nível profissional, ter todas essas conexões criadas permite-me permanecer neutra, que não me deixe prender pelos problemas do cliente e, portanto, ser muito mais útil. Se te envolves no conflito deles, não poderás trazer a paz. Por outro lado, se ajudas a encontrar a ordem, o amor fluirá.
Quais as ferramentas e métodos que aplicas na resolução dos processos que te são confiados?
A minha experiência pode oferecer duas abordagens: a do advogado que não faz constelações com os clientes, mas trabalha com uma abordagem sistêmica, e a do advogado que junta as duas formas. No começo não fazia constelações com clientes. No máximo, limitei-me a usar o playmobil para que pudessem posicionar os bonecos, e isso dava-me informações para focar melhor o meu trabalho, mas não chegava a aprofundar. Mas mesmo que não fizesse a constelação, o foco do meu trabalho sempre foi a partir da posição sistêmica, incluindo todas as partes, levando em conta a ordem e o equilíbrio para tentar compensar, aplicando as ordens do amor segundo Bert Hellinger. Isto facilitou muito a minha forma de trabalhar. Curando a minha ferida da injustiça, pude oferecer os meus serviços de forma neutra, sem me fundir com o cliente, sendo mais objetivo, e isso levou-me a viver muito melhor a profissão. Não chegar a um acordo não é mais um fracasso. Pude entender que nem sempre é possível e sinto que esse trabalho pessoal é muito bom para os advogados, para viverem melhor, eliminarem a frustração ou lidarem melhor com isso.
A outra abordagem com a qual trabalho agora é fundir as duas disciplinas: direito e constelações. Sim, a predisposição do cliente deve ser levada em consideração. Agora, há clientes que já sabem que eu trabalho assim e me procuram por isso. O próprio cliente pede-me aconselhamento jurídico sobre o caso e para fazer a constelação. Há casos em que o cliente não conhece as constelações familiares, e aí posso falar sobre elas e, havendo predisposição da parte deles, fazemos. Não havendo abertura, continuo a trabalhar como advogada com uma abordagem sistêmica, mas sem fazer a constelação. A vontade do cliente deve ser respeitada e se ele quiser um advogado e não quiser fazer um trabalho de desenvolvimento pessoal, é totalmente respeitável. Obrigá-lo a fazer não faria qualquer sentido nem o trabalho seria eficaz. Assim, devemos estar muito atentos ao que o cliente procura, para lhe oferecer uma boa ajuda, porque se eu sair do meu lugar, perco força. Se o cliente procura um advogado e eu pretendo atuar como terapeuta, será difícil ter êxito. No entanto, se o cliente procura um advogado que ofereça uma visão mais completa das questões que estão ocultas, podemos fazer um trabalho mais profundo. Acredito que nenhuma das opções seja melhor que a outra, mas sim que cada caso é um caso.
Qual a percentagem de resolução dos conflitos com esta abordagem sistémica?
Primeiro devemos perguntar-nos o que chamamos de resolver o conflito. Uma das coisas que tem sido mais difícil entender e aceitar é que nem sempre é possível chegar a um acordo, e há sistemas que devem ser compensados. Assim, o facto de ir a julgamento não significa que a abordagem sistêmica não tenha funcionado. Isto não é uma varinha mágica que resolve todos os problemas. Às vezes sim, mas noutras situações o que acontece é que a parte que faz o trabalho possa vivê-lo muito melhor, e sobretudo que os profissionais também possam viver melhor.
Se ambas as partes do conflito estiverem dispostas a fazer um trabalho pessoal, a percentagem será muito maior porque há uma predisposição para resolver o problema. Se apenas uma das partes quer fazer este trabalho, mas a outra não, então a probabilidade de que o conflito seja resolvido diminui. E se nenhuma das partes quer uma solução, esse destino também deve ser respeitado. Muitas vezes nos conflitos de divórcio vejo que o casal está imerso numa guerra terrível, e o que acontece no fundo é que eles se amam tanto que o conflito é a forma de permanecerem juntos. Se pelo menos um deles tomar consciência, podemos encontrar uma solução. Se ambos permanecerem cegos perante essa realidade, o conflito perpetuar-se-á, e é importante vê-lo profissionalmente também.
Qual o sonho por detrás da Associação de Direito Sistémico em Espanha? O que te move?
Que haja um grande número de pessoas associadas, pois significará que a advocacia está a mudar para um olhar mais amigável e para ajudar as pessoas, e que podemos enriquecer-nos uns aos outros.
O teu trabalho representa uma mudança de paradigma no sistema judicial espanhol. Quais as grandes transformações que pressentes no mundo do direito?
Eu não diria que o meu trabalho representa uma mudança de paradigma no sistema judicial espanhol, o sistema é muito grande e muito velho para que eu possa mudá-lo. A única coisa que o meu trabalho oferece é uma mudança de perspectiva, de olhar, que como profissionais vamos aplicando no sistema judicial, mas respeitando-o e dando-lhe o seu lugar porque está em funcionamento há muitos anos, e assim a mudança virá por si mesma. Se mudo o meu olhar, transformo a minha realidade. Portanto, mudar o olhar dos profissionais da justiça acarreta inevitavelmente uma mudança de paradigma no sistema judiciário, pois são as pessoas que o compõem. Mas isso não é algo que se faça num dia.
Sendo esta abordagem sistémica inovadora na justiça espanhola, por natureza conservadora, quais os desafios que enfrentas diariamente?
Não posso dizer que enfrento outros desafios que os outros profissionais. No final, trata-se de ser fiel a si mesmo e ter claro o caminho que quero seguir. Acredito que, em geral, na vida, o mais difícil não são as ações externas, como mostrar um novo modelo de justiça ao mundo, mas a coerência interna: quando estás alinhado com o teu propósito, apesar de poderem surgir dificuldades ao longo do caminho, a verdade é que se vão soltando. O importante é a convicção e ser-se fiel a si próprio. Obviamente muita gente não vai concordar, e vai até tentar desacreditar esse trabalho. Mas isso nada mais é do que o medo do desconhecido. Pessoalmente não me importo porque, como diz o provérbio espanhol: “ladran, pues cabalgamos” (“ladram, então cavalgamos”).
O que acrescentas hoje à advocacia (sendo que te dedicas ao direito de família e divórcios), à mulher e mãe, grávida do segundo filho?
A integração deste olhar mudou absolutamente tudo. Obviamente, ainda sou a mesma pessoa, mas ao tomar consciência das próprias amarras, desatando nós e percebendo que quando algo nos incomoda ou é difícil para nós devemos encarar isso como um desafio e uma oportunidade, tudo muda.
Como mulher, mãe e grávida, conhecer as ordens do amor também ajuda muito a lidar com as situações cotidianas. Por exemplo, estando separada do pai do meu primeiro filho, quando ocorrem algumas manifestações na criança, posso entender as lealdades invisíveis ao pai e à mãe, o que torna a paternidade mais fácil e eficaz também, sem entrar numa luta de poder. No casal, ter consciência da importância do equilíbrio, tanto na troca positiva quanto na negativa, também ajuda muito. No entanto, em casa também tenho os meus assuntos… nem tudo é fácil! O trabalho pessoal nunca acaba porque sempre surgem novas situações, mas esse olhar ajuda.
Na vida profissional, vivo muito melhor e o stress desapareceu. Não quer dizer que não tenha situações específicas que às vezes me sobrecarregam e transbordem, sou humana. Mas o stress já não faz parte do meu estilo de vida nem sinto necessidade de resolver os problemas dos outros. Esta atitude de suposta ajuda, querendo resolver os problemas dos outros como se fossem nossos, é errada e desgastante (além de não funcionar). Aprender a aplicar as ordens do amor ajuda torna a nossa ajuda muito mais eficaz e, portanto, o trabalho é muito mais gratificante.
Caminhamos para uma sociedade mais justa, ou acentuam-se as desigualdades?
Acredito que estamos numa sociedade muito polarizada. Por um lado, há muita gente a lutar pelas desigualdades, mas, no meu ponto de vista, não é com a atitude de luta que se alcançam grandes conquistas. Quando estamos a lutar, é porque nos sentimos ameaçados e atacamos. Por outro lado, se trabalharmos a partir do assentimento, do reconhecimento das coisas tal como elas são, dando-nos permissão para fazer diferente, é possível uma mudança muito mais amorosa e efetiva. Por exemplo: o que passa hoje em dia com o movimento feminista? Muitas jovens estão a vingar o que suas avós sofreram, mas fazem-no a partir de uma posição de vítimas, porque “os homens são maus” e isso, longe de gerar igualdade, o que faz é gerar o contrário. Em Espanha, basta uma mulher denunciar que um homem lhe bateu que, sendo ou não verdade, o homem é detido. Isso é justo? A lei que permite isso, supostamente, tem como objetivo a igualdade, mas não acho que isso seja igualdade. Pelo contrário, no meu entendimento, essa é uma lei que reforça o sentimento de vítima da mulher, o que a impede de avançar porque, além disso, como disse Bert Hellinger, “as vítimas são perigosas” porque não procuram resolver o problema, mas sim procuram aliados para se vingar do seu adversário, tornando-se perpetradores.
Se por um lado há cada vez mais pessoas comprometidas com o seu desenvolvimento pessoal, a verdade é que há também um excesso de informação que as pessoas têm na mente, mas continuamos sem saber gerir as emoções. Há ainda muito trabalho a ser feito, mas pelo menos é cada vez mais visível que existem outras formas de fazer as coisas e que são melhores para a sociedade como um todo. Sair do programa reptiliano de atacar/fugir/paralisar e substituí-lo por um programa de assertividade, autoconfiança e proteção do que nos pertence como seres humanos é necessário para uma sociedade mais justa e equitativa.
Qual o caminho para a harmonia quando crescem as posições extremistas, nomeadamente na política, nos ideais?
Creio que na política atual, a posição generalizada é a de “divide e vencerás” e, além disso, o que é diferente de mim é sistematicamente criticado. Fazemos isso a partir da “boa consciência”, mas já sabemos que só há progresso a partir da má consciência. É impossível caminhar para a harmonia com uma atitude de rejeição e superioridade em relação a quem pensa diferente de mim ou a quem veio antes de mim. Como disse Bert Hellinger: “Primeiro a ordem, e depois o amor flui”. Se eu não conseguir reconhecer e dar lugar aos que vieram antes e incluir todos no meu coração, não vai fluir de qualquer maneira. Os políticos continuam a ser seres humanos com as suas próprias implicações, fiéis aos seus sistemas.
Em Espanha, a Guerra Civil foi muito dura. Para os espanhóis, muito mais difícil do que a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais. Teve lugar entre 1936 e 1939. Hoje ainda existem pessoas que viveram aquela guerra, e é claro que nós somos seus descendentes. Vemos como muitos dos políticos que temos hoje são netos daqueles que lutaram na guerra e estão a vingar questões que vieram antes. Assim como o movimento feminista, existem outros movimentos que nada mais são do que a representação de traumas transgeracionais que os nossos políticos estão a tentar resolver, porque não são conscientes que não é algo deles, mas dos seus avós. Agora vivemos outros tempos, essa luta pela sobrevivência não é mais necessária porque, felizmente, na Europa, a sobrevivência está bastante assegurada. Só que as nossas células guardam recordações desse medo da morte e adotamos atitudes que na época eram necessárias para sobreviver, como atacar, fugir ou paralisar. Mas temos que aprender que esses programas não são mais necessários, e as coisas podem ser feitas de outro lugar.
Uma mensagem para quem vive um conflito
Como é por dentro, é por fora. Esta é a parte mais difícil de entender, mas quando o consegues, muda-te a vida. Quando se apresenta um conflito ou algo que nos incomoda, sugiro sempre que faças duas perguntas:
1. Que parte da responsabilidade tenho no que está a acontecer comigo?
2. O que me está a mostrar esta situação que de outra forma eu não poderia ver?
O mais provável é que negues ter a tua parte de responsabilidade, e penses que o que te acontece é injusto e que o outro é o culpado. Mas é essencial reconhecer que há sempre uma parte de responsabilidade. Por exemplo, às vezes ajudamos demais uma pessoa e essa pessoa trai-nos. Como me faz isto tendo eu sido tão “boa” para ele? Bem, recorrendo de novo ao provérbio espanhol: “para haver uma pessoa inteligente que abusa, tem que haver um tolo que o consente” “para que haya un listo que abuse, tiene que haber un tonto que lo consienta”.
É fundamental ter consciência da parte da responsabilidade que nos cabe e, sobretudo, incluir o que está excluído porque é aí que está a chave da solução. Se violarmos qualquer uma das três ordens de amor (inclusão, hierarquia ou equilíbrio), ocorrerá um conflito de certeza. Só trazendo a ordem de volta ao sistema será possível acabar com o conflito.
E para terminar, uma mensagem para os advogados
O objetivo de um advogado deve ser resolver um problema que uma pessoa ou um grupo de pessoas tem. É importante refletir se, na forma como exercemos a profissão, estamos a ajudar ou a enfraquecer aquelas pessoas que precisam de nós.
A boa ajuda é uma arte, que se alcança quando tanto o ajudante quanto o ajudado saem mais fortes da situação. Por isso, convido todos os profissionais do Direito a refletir se a forma como estão a exercer gera stress e vontade de deixar a profissão ou, ainda assim, convivem com a ilusão de ajudar cada dia mais pessoas.
São muitos os advogados que, após concluírem o meu curso online ou depois de lerem o meu livro, me disseram: finalmente reconciliei-me com a profissão. E sempre que recebo estes comentários, transbordo de felicidade porque esse é o objetivo: ajudar e ser ajudado de forma amorosa e eficaz para todas as partes, inclusive o advogado.
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